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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    50 Junho 2019  
 
 
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PODER OLHAR O CÉU


LUDMILA FRATESCHI [i]



Em Montevidéu é possível ver o céu, os prédios têm uma altura que permite vê-lo quase de qualquer lugar. O céu lá pode ser de um azul tão inacreditável que encanta. A gente fica ali, admirando por um ou dois minutos, como se o tempo parasse, e depois volta ao plano horizontal de contato com a cidade com uma oxigenação diferente no cérebro. A ciudad vieja, antiga e vazia, um pouco decadente, mas viva e acolhedora, parece ter um efeito parecido. Você está lá caminhando, de repente dobra uma rua e sente algo entre o déjà vu e o estranhamento, depara-se com uma pausa que é ao mesmo tempo muito curta e muito longa no automatismo da vida urbana... E também no fluxo ininterrupto de pensamentos que nos tomam o dia-a-dia. Uma topada com uma escada grafitada com Torres-García numa alameda cheia de árvores da parte mais nova da cidade causou em mim o mesmo efeito. Passamos um domingo com cara de domingo, brincando que nem criança num almoço prolongado na rambla, sem medo, sem filtro, com aquele rio que é mar fazendo a vida inteira parecer sem paredes.


Tive a sorte, enquanto estava lá, de poder ir a três museus: o próprio Torres-García, no qual a ideia de brincar com objetos e formas coloridos é muito intensa. O Gurvich, que conta uma história. É uma história real, de um artista local, contada a partir de suas lindas obras com muito afeto, respeito, gratidão e vínculo. Por fim, o Museo Nacional de Artes Visuales, no qual vi duas coisas: quadros grandes do (claro, sempre) Torres-García, ocupando um corredor iluminado por uma janela que dava para a rua, na altura dela (como a relação dele com o espaço é importante!). E uma maravilhosa exposição do Picasso. saí pensando: gênio é gênio. Para os uruguaios, parece ser mais claro que admirar não é o mesmo que idealizar e que é no reconhecimento do valor do outro, no diálogo que enxerga a potência alheia, que nos fazemos crescer. No jardim do Museo, estudantes secundaristas, numa balbúrdia absoluta, comentavam aquilo que haviam visto. E ocupavam.

Também minha ida a Montevidéu foi cheia de música. Uma roda de tambor na rua; nós, em grupo, cantando na rua. Jazz no Solis, um grupo jovem e experimental cheio de talento. Um show do Jorge Drexler num auditório lotado com todo mundo emocionado - público e ele - exaltando a relação entre o som e o silêncio, reverenciando o amor e o romantismo.





Escrevo tudo isso porque para mim o X Congresso FLAPPSIP - Figuras actuales de la violencia foi uma pausa de mil compassos na violência dos últimos tempos. Dessas que auxiliam a instalação e a manutenção da capacidade de estar só necessária ao analista, como nos dizia Décio Gurfinkel. Ele reforçava que, sem tal capacidade, estar com o outro como outro é impossível.

Uma rufada de ar fresco, para que nós analistas possamos nos fortalecer e aguentar em nós mesmos a regressão, o próprio ódio do mundo e dos pacientes e, assim, abrir espaço em nós mesmos para sustentar que nossos pacientes vivam e elaborem o ódio que também sentem, como nos falava Douglas Rodrigo Pereira (em trabalho assinado com Nelson Coelho Jr.).

Um lugar e um tempo no qual foi possível desacelerar e liberar a cabeça do excesso de informação a que estamos expostos e que tem efeito violento, como nos falava Paula Sibilia. Mais livres, menos cínicos. Uma viagem, na qual foi possível reencontrar colegas e professores e restabelecer entre nós uma espécie de pacto de sobrevivência entre pares - será que isso se relaciona à ideia de fratria aludida por Octavio Souza?

Uma das mesas me marcou especialmente. Não apenas porque parte dela discutia a possibilidade de narrar a experiência traumática e fazia relação disso com os momentos políticos traumáticos (o que me toca de forma pessoal), mas porque nela havia amigos judeus discutindo seriamente os efeitos da ação do Estado de Israel e havia do meu lado uma outra amiga judia impactada e mobilizada, que decidiu ouvir, calar-se e pensar. Yara Frateschi (livre-docente de ética e política contemporânea na Filosofia da UNICAMP) tem defendido que a tensão do encontro entre grupos que se consideram oprimidos com grupos que podem ser vistos como opressores (ainda que os indivíduos ali não sejam diretamente oprimidos e opressores) é não apenas necessária, como essencial a um processo que pretenda dar voz a todos os atores de uma democracia. E que, assim, exige escuta, exige o suportar o ódio em si e no outro, e demanda um tempo maior de elaboração.

Nesse sentido, saí pensando se será possível a nós, com ou sem essas janelas, enfrentarmo-nos e àqueles que não são nossos pares. Àqueles que sentimos que nos oprimem e àqueles que se sentem oprimidos por nós. Nossa pausa teve alguns dias numa cidade linda e um pouco mais amorosa e respeitosa com os seres humanos. Mas, nos lembrou Maria Rita Kehl, há um número crescente de pessoas em São Paulo que estão pedindo dinheiro para uma pausa de algumas horas na fome que sentem. O que me faz lembrar de uma discussão em sala no curso de Psicanálise do Sedes em que o próprio Douglas (acima citado) contava sua experiência nos consultórios de rua e o Tales Ab'Saber comentava que um banho e um chocolate poderiam ter um efeito humanizador essencial na interrupção de um ciclo infinito de violência. Todo mundo precisa de ar. Mas a falta de ar não é igual para todo mundo.

Sigamos aprendendo. Cantarolo Drexler, freudiana e esperançosa: " Somos una especie en viaje / No tenemos pertenencias sino equipaje / Vamos con el polen en el viento / Estamos vivos porque estamos en movimiento ".





*Agradeço aos amigos pela companhia, maravilhosa, e pela festa de aniversário!




[i] Psicóloga pela USP. Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Atuou em serviços públicos de psicoterapia e psicanálise e atende em consultório particular.




 
 
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