PASSADO COLONIAL, PRESENTE TRAUMÁTICO:
O RACISMO SOB O OLHAR DA PSICANÁLISE FREUDIANA [1]
ROBERTA VELOSO DE MATOS [2]
“O tempo passa
sem número e calendário,
o opressor volta
com outros inconscientes
com armas
e dinheiro,
mas eu os faço correr…”
Solano Trindade, Canto dos Palmares
Introdução
Em 2020 um sintoma social brasileiro ficou ainda mais escancarado e, puxado
pelas manifestações decorrentes do assassinato de George Floyd por
policiais nos Estados Unidos, o racismo negado pela sociedade brasileira
foi colocado no divã. Tendo como espinha dorsal os conceitos de tempo,
memória e trauma freudianos, a partir das discussões levantadas por Grada
Kilomba em seu livro Memórias da Plantação, acerca da ferida
traumática do sujeito negro, pretendo discorrer, neste trabalho de
finalização do primeiro ano do curso Conflito e Sintoma, sobre como tais
feridas vivenciadas pela população negra na história colonial se atualizam
no presente: “
é como se esses doentes jamais tivessem superado a situação traumática,
ou seja, como se essa tarefa ainda se apresentasse diante deles, atual
e intacta…”
(Freud, 1917, p. 367).
Pensar o racismo como um sintoma social brasileiro parte da própria
concepção de Freud de como o sintoma se forma, qual é o caminho percorrido
para sua formação:
“se configuraria como uma formação de compromisso, resultante de um
conflito, uma luta entre o recalque do saber não sabido do INCONSCIENTE
versus a satisfação pulsional”
, escreveu Lucía Barbero Fuks, uma das coordenadoras do curso em questão,
em seu texto “O sintoma” por ocasião da aula inaugural.
Poderia estabelecer aqui uma articulação do sintoma social do racismo com
os mecanismos de negação e a manifestação perversa, como Grada faz, porém
não teria ainda os recursos teóricos necessários para tal explanação.
Entretanto, considero importante, mesmo que brevemente, evocar como esta
potente construção teórica faz uso de conceitos da psicanálise para pensar
o racismo e como ele opera na subjetividade do sujeito branco e na
estrutura social:
No racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas
violentas de exclusão racial: “Elas/es querem tomar o que é Nosso, por
isso Elas/es têm de ser controladas/os”. A informação original e
elementar - “Estamos tomando o que é Delas/es” - é negada e projetada
sobre a/o “Outra/o” - “elas/eles estão tomando o que é Nosso” - , o
sujeito negro torna-se então aquilo a que o sujeito branco não quer ser
relacionado. Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo
intrusivo, o branco torna-se vítima compassiva, ou seja, o opressor
torna-se o oprimido e o oprimido, o tirano. Esse fato é baseado em
processos nos quais partes cindidas da psique são projetadas para fora,
criando o chamado “Outro”, sempre como antagonista do “eu” (self). Essa
cisão evoca o fato de que o sujeito branco de alguma forma está
dividido dentro de si próprio, pois desenvolve duas atitudes em relação
à realidade externa: somente uma parte do ego - a parte “boa”,
acolhedora e benevolente - é vista e vivenciada como “eu” e o resto - a
parte “má”, rejeitada e malévola - é projetada sobre a/o “Outra/o” como
algo externo. O sujeito negro torna-se então tela de projeção daquilo
que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a
ladra ou o ladrão violenta/o, a/o bandida/o indolente e maliciosa/o.
Tais aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade,
culpa e vergonha, são projetados para o exterior como um meio de
escapar dos mesmos.
(Kilomba, 2019, p. 34).
Como sintoma social estruturado e estruturante das relações sociorraciais
na história brasileira, a fala de outra coordenadora do curso, Ana Maria
Sigal, também na ocasião da aula inaugural, traz a dimensão de como é
impossível pensar o sujeito sem levar em conta seu contexto histórico:
“a psicanálise nos confronta com um sujeito que se estrutura na própria
história, história singular que o determina e que transcorre sujeita ao
momento social e cultural que o determina”.
Tal fala é crucial para o tema deste projeto, já que o momento social
presente que atravessamos é carregado de um passado não elaborado que vem
marcando negras e negros, assim como brancas e brancos no presente.
Não à toa, apesar da escritora não relatar especificamente o racismo em
nosso país - o que não deixa de ser possível, afinal também somos um povo
colonizado - na introdução, ela evoca o valor dos acontecimentos em
diferentes tempos:
“começo este livro lembrando do passado a fim de entender o presente, e
crio um diálogo constante entre ambos, já que o racismo cotidiano
incorpora uma cronologia que é atemporal”
(Kilomba, 2019, p.29). Freud, no início dos estudos sobre o funcionamento
histérico, descreve a dinâmica do trauma que contempla a dimensão atemporal
que Grada traz:
“devemos antes afirmar que o trauma psíquico ou, mais precisamente, a
lembrança do mesmo age como um corpo estranho que ainda muito depois de
sua penetração deve ser considerado um agente atuante no presente, e
vemos a prova disso num fenômeno extremamente curioso, que, ao mesmo
tempo, confere um notável interesse prático a nossas descobertas”.
(Breuer e Freud, 1893, p. 23).
A cronologia atemporal a que Grada relaciona o racismo cotidiano é também a
forma como a psicanálise entende a memória: uma mistura de passados,
presentes e futuros conferindo ao inconsciente, o grande depositário das
lembranças, uma instância que é de um outro tempo, o tempo do só depois, o
tempo de diversos tempos. Nesta união de tempos em que o racismo é
manifestado de diversas formas, emergindo como representante de um passado
colonial no presente, ou seja, a posteriori, é que o trauma se dá. “O tempo do après-coup
é um conceito fundamental no arcabouço teórico freudiano. Há
acontecimentos da infância que se inscrevem difusamente, marcas
psíquicas que ficam informes, indefinidas, à espera de um acontecimento
e que só depois adquirem sentido. Temos então a ideia de um passado que
não é fixo, mas que se ressignifica no presente”
, como afirma Silvia Leonor Alonso.
Os tempos do trauma
O documentário Menino 23 – Infâncias perdidas no Brasil conta a
história de meninos órfãos do Rio de Janeiro que na década de 30 foram
levados para Campina do Monte Alegre, no interior de São Paulo, por
empresários da região ligados ao pensamento eugenista. Cerca de 40 anos
após a abolição da escravidão, 50 meninos filhos, netos e bisnetos de
africanos e africanas escravizadas são novamente colocadas na cena
colonial. Um dos meninos, Aloísio Silva, que também tem sua identidade
sequestrada ao ser nomeado com um número - 23 - perguntado do que ele se
lembra da viagem do Rio para a Fazenda Santa Albertina de Osvaldo, é
novamente confrontado com a atemporalidade do trauma colonial:
“sabe que nem tem como responder, eu fico irritado quando volta as
coisas na minha cabeça. A minha infância foi roubada, nem sei o que é
isso”,
responde Aloísio.
O racismo se torna um fantasma, assombrando-nos noite e dia. Um
fantasma branco. Vivê-lo é tão excessivo e intolerável para a
organização psíquica, que a violência do racismo assombra o sujeito
negro de maneiras que outros eventos não o fazem. É uma estranha
possessão que retorna, de maneira intrusiva, como conhecimento
fragmentado. Somos assombradas/os por memórias e experiências que
causaram uma dor desumanizante, uma dor da qual se tem pressa de fugir.
O racismo cotidiano revela esse primeiro elemento do trauma, quando
alguém é inesperadamente agredido por um evento violento que é
experimentado como um choque e persiste em assombrar o eu
”.
(Kilomba. 2019, pp. 219/220).
Lucía Fuks em O traumático na clínica explica também como esse
fantasma descrito por Grada se dá no psiquismo teorizando algo do que
aparece na fala de Aloísio diante da recordação da cena em que é
escravizado: “
a reativação desta lembrança provoca um fluxo de excitação que desborda
as defesas do ego. O aparelho psíquico se vê invadido por um afeto
demasiado intenso para suas possibilidades de domínio; dizer algo se
faz impossível, ao menos num primeiro momento; a fuga, presa de uma
vivência de terror, se apresenta como única saída no exemplo
paradigmático, descrito no
Projeto de uma Psicologia Científica (1895)”.
Penso também que essa fala de Aloísio vai ao encontro do caráter do
traumático, já que revela os efeitos da experiência traumática do racismo
em seu passado e como ele se dá no presente. Uma tentativa de simbolização
do trauma pela palavra é ensaiada, mas o que se dá é a insuficiência da
linguagem para dar conta de representar tamanha violência: “sabe que nem tem como responder”. Na conferência 18, “A fixação no trauma, o inconsciente” Freud explica como as vivências dos doentes de nervos fixadas podem se caracterizar como traumáticas também:
“a neurose equivaleria a um adoecimento traumático e nasceria da
incapacidade de dar conta de uma vivência carregada de um afeto muito
intenso”
(Freud, 1917, p. 367).
Um afeto intenso fruto de uma história coletiva carregada de violências em
todos os âmbitos que, em episódios do cotidiano contados pela autora em Memórias da Plantação, reavivam e não deixam esquecer a ferida
aberta e profunda que é o racismo:
“A escravidão, o colonialismo e o racismo cotidiano necessariamente
contêm o trauma de um evento de vida intenso e violento, evento para o
qual a cultura não fornece equivalentes simbólicos e aos quais o
sujeito é incapaz de responder adequadamente porque, como Claire
Pajaczkowska e Lola Young (1992, p.200) argumentam, ‘a realidade da
desumanização do povo negro é aquela que não há palavras adequadas para
simbolizar’”.
(Kilomba. 2019, p. 214).
O trauma no cotidiano
Para abordar os efeitos do trauma da discriminação racial vivenciada no
passado e atualizada no presente, penso que se faz necessário nomear no que
consiste o termo racismo cotidiano, segundo a autora:
“todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que
colocam o sujeito negro e as Pessoas de Cor não só como “Outra/o - a
diferença contra a qual o sujeito branco é medido - mas também como
Outridade, isto é, como a personificação dos aspectos reprimidos na
sociedade branca...Eu me torno a/o “Outra/o” da branquitude, não o eu -
e, portanto, a mim é negado o direito de existir como igual”
(Kilomba, 2019, p. 78).
Neste sentido, partindo de vivências como as descritas pela autora ao
definir uma das formas do racismo operar, ou seja, cotidianamente na vida
da pessoas negras em episódios corriqueiros como em um restaurante, em
espaços de ensino, no ônibus ou no mercado, a rememoração da lembrança
traumática revivida por um nova situação de racismo transporta o sujeito
para a cena colonial em que o branco nomeia o sujeito/a negro/a como o
diferente, como o Outro subordinado e exótico, nas palavras de Grada.
“De repente, o passado vem a coincidir com o presente, e o presente é
vivenciado como se o sujeito negro estivesse naquele passado
agonizante, como o título do livro anuncia”
(Kilomba, 2019, p. 30).
Em um cotidiano bem próximo é possível identificar como uma situação
rotineira traz à tona o passado e coloca o sujeito negro como o Outro
diferente e, portanto, retirado e violentamente separado de qualquer
identidade que possa realmente ter: uma aluna negra de uma universidade na
cidade de São Paulo é abordada pelo coordenador de seu curso, perante toda
a sala de aula, com a seguinte fala:
“gosto muito de vocês, negros, inclusive tenho amigos africanos com
esse mesmo ‘tipo’ de cabelo”
. Na matéria do jornal online The Intercept, a estudante
relata que “se sentiu constrangida e congelou, sem conseguir reagir ou
responder”. Essa cena parece ilustrar bem como um evento torna o sujeito
impotente de dar conta de uma vivência carregada de afeto (Freud, 1917, p.
367), como a aluna descreve o choque violento que a fala do então
coordenador produziu em seu psiquismo.
Na obra da escritora portuguesa, um dos capítulos aborda especialmente o
cabelo e sua potência de legitimação da identidade negra e também como
recurso para designar o negro como o Outro exótico que está fora do padrão
branco, bem exemplificado no relato acima. Grada usa episódios relatados
por uma das entrevistadas do livro em que o cabelo também foi alvo de
racismo para mostrar como tais situações carregam a atemporalidade do
trauma da história colonial:
“a violência e a intensidade do racismo são tamanhas que, apesar de
esperadas, elas sempre recriam esse elemento de surpresa e choque. Em
outras palavras, uma pessoa nunca está preparada para assimilar o
racismo porque, como em qualquer outra experiência traumática, é muito
assustador ser “integrada” nas estruturas mentais já existentes. Além
disso, o racismo cotidiano não é um evento isolado, mas sim um
acumulador de episódios que reproduzem o trauma de uma história
colonial coletiva. O choque violento, portanto, resulta não somente da
agressão racista, mas também da agressão de ser colocada (de volta) no
cenário colonial”
(Kilomba, 2019, p. 218).
Ser colocada de volta na cena colonial, como a estudante interceptada pelo
gestor universitário ou até mesmo Aloísio em outro contexto que não de
discriminação, mas de resgate de uma lembrança intensa que, como já dito,
evoca no presente o passado, é da ordem de tamanha desintegração psíquica
que o sujeito se encontra incapaz de reagir ao evento e, no mutismo de um
afeto impossível de ser representado, a imobilidade psíquica reina.
“
O passado colonial “memorizado” no sentido em que “não foi esquecido”.
Às vezes, preferimos não lembrar, mas na verdade, não se pode esquecer.
A teoria da memória de Freud é, na realidade, uma teoria do
esquecimento. Essa pressupõe que todas as experiências, ou pelo menos
todas as experiências significativas, são registradas, mas que algumas
ficam indisponíveis para a consciência como resultado da repressão e
para diminuir a ansiedade. Já outras, no entanto, como resultado do
trauma, permanece presente de forma espantosa. Não se pode simplesmente
esquecer e não se pode evitar lembrar.
A ideia de “esquecer” o passado torna-se, de fato, inatingível; pois
cotidiana e abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a
cenas que evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um
presente irracional. Essa configuração entre passado e presente é capaz
de retratar a irracionalidade do racismo cotidiano como traumática
”
. (Kilomba, 2019, p. 213).
Referências bibliográficas:
Alonso, Silvia Leonor. O tempo que passa e o tempo que não passa. Revista Cult (2006).
https://revistacult.uol.com.br/home/o-tempo-que-passa-e-o-tempo-que-nao-passa/
Franca, Belizário. MENINO 23: Infâncias perdidas no Brasil. 2016.
https://www.youtube.com/watch?v=rYSspBodYSQ
Freud, Sigmund. Obras completas, volume 1: Estudos sobre a
histeria (1983-1895) em coautoria com Josef Breuer, “Sobre o mecanismo
psíquico dos fenômenos histéricos”. São Paulo, Companhia das Letras, 2014.
Freud, Sigmund. Obras completas, volume 13: Conferências
introdutórias à psicanálise (1916-1917), Conferência 18. A fixação no
trauma, 1917.
Fuks, Lucía Barbero. O sintoma. Aula inaugural do curso Conflito e Sintoma,
Instituto Sedes Sapientiae, março 2020.
Fuks Lucía. Barbero. O traumático na clínica, Estados Gerais da
Psicanálise. http://egp.dreamhosters.com/EGP/137-o_traumatico.shtml
Kilomba, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de
Janeiro, Cobogó, 2019.
Sayuri, Juliana. Após aluna relatar ter sido vítima de racismo, Unip demite
testemunhas, The Intercept Brasil, 1º de outubro 2020.
https://theintercept.com/2020/10/01/apos-aluna-relatar-ter-sido-vitima-de-racismo-unip-demite-testemunhas/
Sigal, Ana Maria. Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma. Aula inaugural
do curso Conflito e Sintoma, Instituto Sedes Sapientiae, março 2020.
[1]
Originalmente apresentado como monografia para o primeiro ano do
curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, em 2020.
[2]
Jornalista, acompanhante terapêutica pelo Instituto A Casa,
psicanalista. Aluna do 2º ano do curso Conflito e Sintoma do
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e membro
do Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar da mesma instituição.