O Departamento de Psicanálise integra a
FLAPPSIP - Federação Latino-americana de Associações de Psicoterapia
Psicanalítica e Psicanálise - juntamente com outras nove instituições.
Como tal, recebeu um convite, por parte da
CPPL – Centro de Psicoterapia Psicoanalítica de Lima
/ Peru (também incluído na Federação) para compor uma mesa virtual de
apresentação de trabalhos, no seu XIX Congresso Internacional,
juntamente com representantes de outras três instituições membros. O
tema do congresso era
El futuro por-venir: psicoanalisis entre certezas, perplejidades e
incertidumbres e ocorreu nos dias 22, 23 e 24 de outubro passado.
Já o tema da
Mesa FLAPPSIP
– como são chamadas essas mesas compostas por instituições federadas –,
e da qual o Departamento participou, era
El lugar de la realidad en los procesos de subjetivación y en la clínica.
O Grupo de Apoio FLAPPSIP do Departamento convidou a colega Marisa
Corrêa da Silva, interlocutora do
Grupo de Trabalho A Cor do Mal-Estar: psicanálise e racismo – da
invisibilidade do trauma ao letramento , para nos representar nessa oportunidade. O leitor do Boletim
Online
tem acesso, nesta publicação, ao texto lido por Marisa Corrêa da Silva
na manhã de 23 de outubro. Boa leitura!
Grupo de Apoio FLAPPSIP/ Departamento de Psicanálise/ Instituto Sedes
Sapientiae/ São Paulo
RACISMO: UM TRAUMA COLETIVO NÃO CONSIDERADO [1]
MARISA CORRÊA DA SILVA [2]
Pensando no título desta mesa me propus a falar de racismo enquanto uma
realidade presente em todo o mundo, porém curiosamente pouco abordado por
nós psicanalistas.
Igualmente curioso é observar o grande mal-estar que se instala quando a
questão é abordada, inclusive no meio psicanalítico.
Como poderíamos entender esse mal-estar diante de uma situação tão
naturalizada?
Que mal-estar é esse?
O racismo é uma prática de enorme violência, instalada há séculos no nosso
cotidiano, e que, compulsoriamente, se faz presente nos processos de
subjetivação.
Nesse sentido como poderíamos entender na clínica psicanalítica a pouca
atenção dedicada à uma vivência tão determinante?
Não pretendo responder a essas perguntas ao longo da minha exposição.
Elas visam muito mais um convite à reflexão e à troca de impressões entre
nós.
Vou me restringir a falar sobre o racismo em relação à população negra por
ser uma realidade impositiva no Brasil, país onde houve o maior número de
pessoas negras escravizadas por mais de 300 anos, e que hoje tem a sua
população negra numericamente majoritária.
Proponho-me a abordar aqui especificamente o componente traumático
introjetado do racismo como determinante de vários aspectos da nossa
subjetividade.
Em um país estrutural e institucionalmente racista, não podemos falar de
uma situação de trauma enquanto um episódio isolado e pontual, mas sim de
um processo traumático secular, estrutural, cumulativo, transgeracional,
coletivo e introjetado que acomete toda a população de um modo complexo e
com frequência despercebido. Um processo que adoece o sujeito sem alcançar
muitas vezes uma representação psíquica.
O Estado brasileiro foi construído sob uma mentalidade racista que
inclusive justificou a escravidão e garantiu que o Estado não reconhecesse
a escravidão como um crime hediondo, pelo contrário, autorizasse uma
violência continuada.
Quando a escravidão e o racismo são negados enquanto feitos violentos, não
sendo criminalizados, marcas traumáticas são reinscritas, transcendendo as
violências cometidas. A negação do ato traumático funciona como um segundo
momento do trauma. No caso da escravidão e do racismo ainda houve o
agravante de terem sido justificados pela afirmação de que um sujeito negro
não é necessariamente um sujeito, é praticamente uma coisa. Dessa forma o
dominador intenciona se abster da responsabilidade pela execução desta
violência, garantir seus privilégios e a dominação.
O comprometimento óbvio da saúde mental do sujeito abusado pode gerar
transtornos de comportamentos, que resultem em ações danosas para si e para
outros.
O dominador, que nega o seu papel de algoz, também nega a correlação entre
este comprometimento da saúde mental e a violência executada e sofrida,
distorce os fatos e responsabiliza o sujeito violentado de modo absoluto
pelas ações auto e heterodestrutivas. Inscreve dessa forma neste sujeito o
estigma de um ser pernicioso para a sociedade, fechando o ciclo ao se
eximir da responsabilidade e culpabilizar, de forma projetiva, o sujeito
abusado de ser o algoz de si mesmo.
Neste ciclo fechado e alimentado pelo dominador identificamos uma relação
complexa e perniciosa entre dominado e dominador, onde, entre outros
mecanismos, acontece a internalização do racismo.
“Os conceitos atuais psicanalíticos apontam para definir Introjeção como
uma forma de Internalização das vivências nas relações objetais. Aspectos
da relação é que seriam internalizados e não o objeto.” (Rosenberg, Frank)
Em vivências não traumáticas de relação objetal a introjeção evolui
temporal e processualmente para uma Identificação secundária madura. Se a
relação objetal não tiver sido traumática, as introjeções terão uma função
de amadurecimento do aparelho psíquico, caso contrário terão uma função
muito mais defensiva.
“Em vivências traumáticas avassaladoras é como se o sujeito saísse do seu
corpo e se vivenciasse como um sujeito externo ao que acontece com o seu
corpo, como se esse corpo não fosse o seu. A partir disso há o
desenvolvimento de transtornos das funções do Eu de apreender e perceber de
modo integrado, temporalmente ordenado, organizado, coerente as funções
sensoriais, os afetos, o pragmatismo e as funções cognitivas. A
consequência são os processos dissociativos destrutivos que levam a
processos de regressão, que comprometem a capacidade de simbolização e
vivência de identidade consigo mesmo, assim como a capacidade de perceber
que a apreensão de si mesmo e a apreensão do objeto estão relacionadas.
Nesses casos de introjeções traumáticas, o fenômeno dissociativo se daria
como se o pedaço do Eu que “saiu do corpo” ficasse como observador do outro
pedaço do Eu que sofreu o trauma e vivenciasse esse pedaço do Eu,
traumatizado, totalmente estranho e nocivo, como o objeto que exerceu o
traumatismo.
A gravidade das consequências se dá a partir do quanto essa vivência
permanece estranha ou coerente. Com ou sem entendimento e simbolização do
acontecimento traumático. O quanto o Eu, ou parte dele, é vivenciado como
um estranho, não pertencente e como a outra parte do Eu lida com essa parte
estranha.” (Rosenberg, Frank)
Em vivências traumáticas, onde as relações objetais não podem ser
integradas psiquicamente, há uma tentativa de defesa contra os efeitos
lesivos dessa relação objetal traumática através da clivagem e da negação.
Com isso as introjeções traumáticas não são integradas num Super Eu ou num
Ideal de Eu maduros. Permanecem clivadas e depositadas na introjeção. Em
processos posteriores de elaboração ao longo do desenvolvimento acontece
uma Identificação secundária imatura, global e rígida do Eu com esse
introjetado devido à não possibilidade de integração.
O introjetado traumático seria um lugar apartado no aparelho psíquico, do
qual o Eu pensante, a parte funcional do Eu, tenta simbolizar usando
mecanismos de clivagem e negação para se manter separado, distanciado desse
introjetado traumático.
O introjetado traumático seria o resultado de uma introjeção, que não pode
ser transformada numa representação com funcionalidade simbólica.
A agressão imposta pelo agressor à vítima é introjetada junto com um
sentimento de culpa, que a sobrecarrega e tortura de modo intrusivo, e com
o qual a vítima se identifica, libertando assim o agressor deste sentimento
real de culpa. Com essa identificação secundária e liberação do agressor da
sua culpa, a vítima pode ter esse agressor como um objeto parcial positivo
e amado, além de manter algo em comum, um pertencimento ao necessário
objeto de ligação.
Essa relação objetal traumática introjetada gera um ciclo vicioso: uma
parte do Super Eu rejeita essa identificação e a outra parte aceita. A
parte que rejeita, condena o Eu pela cumplicidade com o agressor, gerando
igualmente culpa e desvalia no Self, confirmando dessa forma a culpa e a
desvalia introjetada. Um problema, que por si só pode ser insolúvel.
O sujeito se fixa paradoxalmente nesta introjeção: por um lado a vivencia
como torturante, ameaçadora e invasiva, por outro lado como objeto interno
forte, onipotente e inatingível, possuidor de um poder que passa a desejar
para si mesmo. Este fenômeno aparece no trabalho analítico como uma
resistência narcísica dentro do processo transferencial.
A fixação na manutenção da relação com o agressor deve ser entendida como
uma tentativa de preservar a necessária relação parcial com o objeto. O
agressor ocupa o espaço da relação com o objeto interno.
Seria um processo de identificação projetiva, onde a violência é tanta que
a vítima se vê à mercê do agressor, absolutamente sobrecarregada com a
agressão, regredindo para um estado onde não consegue mais diferenciar quem
é ela e quem é o agressor.
Rosenberg propõe que o Ideal de Eu tenha também um papel importante,
principalmente para a identificação narcísica com introjeções traumáticas e
que o Super Eu e Ideal de Eu possam entrar em conflitos graves entre si. No
caso do racismo, o Ideal de Eu imposto pelo dominador se mostra
inalcançável para o dominado.
Do ponto de vista psicodinâmico, poderíamos definir o trauma em questão
como um processo de traumatização, um trauma de relacionamento, onde
recorrentes e crônicas investidas traumáticas são realizadas por pessoas;
muitas vezes por pessoas com as quais se tem uma relação de vínculo ou de
dependência.
"O trauma psíquico é um acontecimento que arrebata abruptamente a
capacidade do Eu de proporcionar uma sensação mínima de segurança e
plenitude integradora, resultando que o Eu vivencie medo ou impotência
avassaladores o suficiente para se sentir ameaçado, provocando modificações
permanentes na organização psíquica" (Cooper,1986, p. 44 em Bohleber).
Um fator essencial nessa definição é a característica repentina, disruptiva
e incontrolável do evento traumático e a experiência de tornar o Eu
indefeso. A experiência traumática confronta o Eu com um "fato consumado"
(Furst, 1977, p. 349 em Bohleber). As reações do Eu chegam tarde demais.
Elas não acontecem como resposta a um perigo iminente, mas somente depois
que ele se tornou realidade e o Eu foi passivamente rendido a esse perigo.
Se o perigo é visto como inevitável, o desamparo se transforma em um
desistir de si mesmo. Para Krystal, esse ataque ao psiquismo do sujeito
pelo agente traumático, que lesiona a função de defesa e a função
expressiva do medo, levando à inibição de ambas as funções, seria o
verdadeiro evento traumático.
O estímulo violento externo não se orienta nem aos interesses e estágios de
desenvolvimento do sujeito, nem às suas necessidades narcísicas, sendo
introduzido à força nele, de tal forma que esse sujeito não tem chance de
se defender do ataque. Pelo contrário, é forçado a assimilar a interação
com esse ataque dentro de si, ao mesmo tempo, que é confrontado com um
stress interno reativo e uma sobrecarga de afeto.
Em caso de uma concomitante sub estimulação deste sujeito, como se vê
frequentemente na população racializada que vivencia humilhação, abandono,
privação, a vulnerabilidade em relação à ação perturbadora da experiência
traumática propicia a modificação da relação do sujeito consigo mesmo e com
o seu entorno, não só no momento traumático atual como ao longo dos
processos sucessivos da sua vida.
Os acometidos pelo trauma encontram-se num estado de choque e horror, de
tal modo que as funções egóicas e superegóicas desabam, regredindo o
sujeito à situação de não ver mais saída para nada, havendo uma disfunção
global de vida.
Essa regressão varia na dependência dos seguintes fatores:
- Da frequência e a intensidade da experiência traumática;
- Da fragilidade da estrutura egóica;
- Do grau de ligação e dependência ao agressor;
- Do tamanho da ameaça vital da violência traumática;
- Da imprevisibilidade do episódio traumático;
- Da qualidade e quantidade da proteção, do acolhimento e da sustentação
recebida.
- Da época de vida em que o trauma ocorre.
Nem todas as situações traumáticas têm o mesmo efeito em todas as pessoas,
os fatores predisponentes também devem ser levados em consideração.
A complexidade no caso do racismo, no meu entender, é que há muitas nuances
entre o estado de aprisionamento traumático, onde há quase uma paralisia e
um desistir de si mesmo, e o estado de um funcionamento mental saudável e
favorável a si mesmo. A constância, a cronificação e o efeito cumulativo
das vivências traumáticas interferem nos mecanismos de defesa e nas
expressões reativas aos estímulos externos. Reações que deveriam agir a
nosso favor, podem já não funcionar como de fato deveriam no cuidado da
autopreservação e como geradores de bem-estar e plenitude. Como se o Eu
reconhecesse determinados ataques nocivos como normatizados e toleráveis,
não resultando necessariamente numa paralisia, sem deixar, no entanto, de
causar inibições e restrições ao seu funcionamento. Essas inibições e
restrições, por passarem despercebidas, podem resultar em sofrimentos,
sintomas e transtornos de comportamento que passam igualmente
despercebidos. Como se estivéssemos tolerando chibatadas, nos movimentando
com grilhões no corpo e nos expressando com uma mordaça na boca, sem se dar
conta disso.
O racismo está internalizado em todos os que vivem em uma sociedade
estruturalmente racista. Refiro-me a um processo muitas vezes inconsciente,
naturalizado e aceito dentro de uma “normalidade” social constituída de
estereótipos. Esse aspecto é de extrema importância na prática clínica
analítica.
Para que a relação analisando(a)-analista facilite o acesso, a
representação e a elaboração das consequências traumáticas do racismo, essa relação precisa
permitir que processos intra e interpsíquicos de elaboração e simbolização
aconteçam tanto com o(a) analisando(a) como com o(a) analista.
Ou seja, ambos vão precisar se confrontar com o seu racismo internalizado.
Levando-se em consideração que a maioria dos profissionais psicanalistas
não é constituída por negros, como consequência da própria discriminação
racial, que dificulta a ascensão sociocultural da população negra e pobre,
é muito importante que o(a) analista não negro atente para que a relação analítica não reencene comportamentos racistas. O mesmo se aplica a um(a) analista negro(a), que passe a ocupar uma posição até então praticamente exclusiva da privilegiada população branca.
Fica aqui o convite para a construção de uma clínica psicanalítica
transformadora, que considere esta vivência de racismo num trabalho
psicanalítico a ser realizado com muita delicadeza, com sustentação do
mal-estar, com sustentação das transferências e contratransferências
agressivas, além de atenção e respeito aos limites e às possibilidades
individuais de simbolização, mentalização e confrontação com as
experiências traumáticas.
Considerar o traumático do racismo na subjetividade e na clínica, implica
num comprometimento antirracista da psicanálise.
[1]
Apresentação realizada em 23/10/2021 no XIX Congresso CPPL- Centro
de Psicoterapia Psicanalítica de Lima/Peru: “El futuro por-venir.
Psicoanálisis: entre certezas, perplejidades e incertidumbres” na
mesa FLAPPSIP de título “O lugar da realidade nos processos de
subjetivação e na clínica”.
[2]
Médica psiquiatra e psicanalista, membro do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; articuladora do Grupo de
Trabalho, Intervenção e Pesquisa “
A Cor do Mal-Estar: Psicanálise e Racismo: da Invisibilidade do
Trauma ao Letramento”
no mesmo Departamento. Membro do Instituto
Psicanalítico de Berlim – PaIB.