ITAÚNA [1]: UM TESTEMUNHO, UMA HOMENAGEM
MARIA SILVIA BORGHESE [2]
Andaraí, Bahia. Início dos anos 1960. Uma família pobre cria seus filhos
com muita dificuldade. As crianças ajudam na pequena roça familiar,
trabalham desde cedo e, cansadas, mal conseguem ver o sol se por, pois já
dormem vencidas pela exaustão de mais um dia de muito esforço e pouca
comida. A família é descendente de mulheres e homens escravizados que, após
a abolição, migraram para o Recôncavo, buscando encontrar rumo, tendo sido
largados à própria sorte, sem direito a um mínimo gesto de reparação do
Estado ou da sociedade.
À essa altura, já é prática corrente, nessas gerações de negras e negros
empobrecidos, a migração para o sul e sudeste para tentar a vida nas
regiões mais ricas do país.
São Paulo, capital. Na mesma época, uma família de classe média, formada
por um casal e cinco filhos (seriam seis em breve), descendentes de
imigrantes italianos e portugueses, ‘misturados’ a brasileiros que também
já haviam se ‘misturado’ antes, luta com dificuldades para sobreviver e
educar os filhos. São trabalhadores da classe média baixa, filhos de
imigrantes que se instalaram no bairro do Jabaquara, construindo pequeno
patrimônio, vivendo com muito trabalho, mas dentro dos limites da dignidade
necessária à vida e à sobrevivência.
De um lado, pessoas tratando de sobreviver, de se manter vivas. De outro,
pessoas buscando construir uma vida, criar filhos e vislumbrar futuro. Há
luta pela vida nos dois lados, mas há diferenças fundamentais entre esses
dois grupos: de origem, de oportunidades, de cuidados, de amparo social. Na
estrutura social vigente, as diferenças mencionadas são fundamentais, pois,
do primeiro universo saem em direção às cidades grandes as empregadas
domésticas e os trabalhadores da construção civil, principalmente. No
segundo grupo estão os imigrantes europeus, que rapidamente se tornam
pequenos empreendedores, comerciantes etc. No âmbito doméstico, dividem-se
em patrões e empregados, marcados por uma relação que está ainda muito
longe de ser puramente de trabalho, mesmo para os moldes capitalistas.
E, foi seguindo a irmã mais velha, que Itaúna veio dar em São
Paulo, terra de muitos ‘neosenhores’ e ‘neosinhazinhas’, descendentes de
uma cultura ainda escravocrata, sociedade fundada na dominação, que se vale
da desigualdade aprofundada pelo capitalismo tardio.
Ita, como costumávamos chamar aquela que viria ser considerada minha segunda mãe, era uma adolescente de 15/16 anos, chegando em uma
cidade já grande e hostil, quase sem as qualificações exigidas pelos
padrões do lugar. Não sabia ler ou escrever, era bastante tímida e
amedrontada, pois, apesar da ausência de instrução formal, sobre diferenças
sociais e violência muito já conhecia desde seu próprio corpo. O caminho
traçado era encontrar trabalho em casas de família, em tempos em que sequer
eram discutidos quaisquer direitos trabalhistas de uma categoria
profissional que jamais tinha sido vista como tal.
Ninguém questionaria que ‘meninas/mocinhas’ pobres vindas do Nordeste e do
interior de Minas ou São Paulo fossem simplesmente acolhidas por famílias
paulistanas, trabalhando de sol a sol, praticamente sem folga, a troco de
moradia e alimentação. E foi nessas condições que Ita entrou na minha vida
e na de meus irmãos. Aqui, me separo deles, pois meu relato diz respeito a
uma recuperação lenta e vagarosa de memória, que me impulsionei a fazer,
sobre os aspectos concernentes a minha própria branquitude, marcada pela
relação amorosa com Ita.
Nasci e cresci em um Brasil racista, racismo insidioso, mal disfarçado.
Como sabemos, o racismo por aqui se camufla sob o discurso da miscigenação
e da convivência ‘alegre e cordial’ entre todos os povos. Aliás, esse é
quase o slogan que costuma vender ainda nos dias de hoje a cidade
onde nasci, cresci e vivi. De fato, São Paulo é uma cidade de todos os
povos, de muitas misturas, mas a convivência entre eles está muito longe de
ser pacífica, igualitária e feliz, pois São Paulo é o retrato mais cruel
da desigualdade social, que segue adoecendo e matando as populações pobres
e miseráveis.
Mas presos são quase todos pretos, ou quase pretos, ou quase brancos
quase pretos de tão pobres...
(Haiti, Caetano Veloso).
Fico imaginando como deve ter sido dolorido para Ita, ao migrar para a tal
terra da esperança e da oportunidade, encontrar uma cidade assim hostil,
assustadora, uma grande fazenda urbana, cheias de troncos e chicotes tão
bem metaforizados – outros, nem tanto. Certamente, ser acolhida por uma
família poderia representar alento e amparo. De alguma maneira, poderia se
dizer que, pelo lado das famílias, a intenção caridosa e generosa pudesse
estar presente, e, pelo lado de alguém como Ita, seria o encontro de uma
oportunidade para ser abrigada, um degrau na travessia para uma suposta
vida melhor. Entretanto, essas relações mal disfarçavam outros interesses,
uma vez que a escravidão permanecia estruturalmente em nossos meios de vida
e em seus corpos. Em troca de guarida, as famílias sempre esperavam muito
trabalho dessas meninas, muitas delas viravam mulheres e envelheciam no
seio das famílias brancas, nossas mães pretas. Os benefícios
esperados pelas famílias brancas eram extraídos imediatamente, no cotidiano
de trabalho árduo das mães pretas; já o degrau prometido a essas
jovens negras para que alcançassem a ansiada e legítima vida melhor,
raramente se colocava de fato como um lugar propulsor. Na verdade,
convertia-se em um eterno platô, o qual era quase impossível ultrapassar.
Certa vez, ouvi alguém usar a expressão ‘escravidão branca’ para se referir
a este período no Brasil, que jamais terminou exatamente, e pensei que essa
utilização da palavra ‘branca’ não poderia ser mais apropriada nesse caso.
A abolição dos povos escravizados no Brasil se sustenta nesse modo branco e
rico – de grande parte de nossa elite – de fazer as coisas em benefício
próprio, a partir da suposta implementação de avanços sociais. Esse é
exatamente o caso da abolição da escravidão no Brasil.
Nesse contexto, Ita chega em minha casa em 1963. Uma menina muito tímida e
envergonhada, tão risonha, tinha um olhar doce, meigo e carinhoso. Trabalho
não lhe faltava, nem disposição. Não sabia ler nem escrever, mas trazia uma
curiosidade no olhar, uma inquietação. Minhas lembranças de Ita em seus
primeiros tempos na minha casa são de puro prazer, pois ela se juntou à
criançada (era quase uma). E, sem que tivesse obviamente a menor noção
disso, apresentava-nos à fantasia, à riqueza e à criatividade de nosso
mundo imaginário. Minha mãe era extremamente mística e amedrontadora – suas
convicções religiosas sempre se basearam em medos, culpas e punições –, por
isso, a presença de Ita se converteu pouco a pouco em garantia de proteção,
a partir da invenção de um mundo lúdico, amoroso e gentil. Acostumada a
construir seus próprios brinquedos, uma vez que havia crescido muito pobre
e sem recursos, ensinou-nos a fazer famílias de bonequinhos de casca de
melancias ou de laranjas; recortávamos, pintávamos, elaborávamos roteiros
completos para nossas brincadeiras.
Foi assistindo a Roma, de Alfonso Cuarón, que me flagrei em
prantos, ao acompanhar a saga da personagem principal, que ajudava a criar
a prole numerosa de uma família, cujo casal se separa no início da
história. A relação das duas mulheres, a matriarca e a empregada doméstica
da família, retratada ali na tela diante de meus olhos, trouxe Ita,
resplandecente e iluminada, de volta à tona de minha mente. Aquela era
também a história de minha família.
Anos de análise – e não foram poucos – trabalhando minha relação
conflituosa com minha mãe, mas apenas em 2018 eu me dei conta de que,
durante bom tempo da análise, em meu discurso sobre minha história de
relação com a figura materna, Ita sempre esteve presente. Ela foi uma
espécie de ‘alter’ figura materna, a partir da qual eu costumava elucidar o
quanto minha mãe, pelas inúmeras dificuldades que havia atravessado na
vida, perdera-se nos caminhos intensos e árduos da maternidade. Lembro de
exemplos que podem parecer prosaicos, como podem ser muitas de nossas
lembranças acessadas no divã, mas contam muito sobre a figura de minha mãe preta:
Logo após meu casamento, chegando de viagem, fui almoçar na casa de
minha mãe. Ela me conta que havia sugerido um cardápio para Ita que,
imediatamente, se colocou contrária, pois sabia que eu detestava a
comida sugerida. Ela me conhecia muito mais do que minha mãe.
Em uma madrugada, ainda criança, acordei passando mal. Me lembro
vivamente de chamar Ita para me ajudar. E ela veio em meu socorro,
calma, silenciosa, carinhosa.
Essa é uma lembrança da presença de Ita, no lugar da mãe e essa
positividade na nossa relação é uma marca profunda que carreguei para vida,
na mãe em que me converti.
Era quase inacreditável que o eixo principal de minha narrativa havia sido
de forma ‘pregnante’ apenas a negatividade de minha mãe. Somente em 2018,
iluminou-se em mim o protagonismo de Ita em cada uma dessas cenas, minha mãe preta, minha segunda mãe. São apenas exemplos
esparsos? Sim, nem conseguiria revelar outros tantos elementos de minha
história neste âmbito. Contudo, eles foram se sucedendo e assaltando minhas
lembranças, ampliando e ressignificando minha memória. Imensa gratidão, eu
experimentei por Ita!
Claro que sabia de minha gratidão por tudo que ela representou em minha
história de vida. Entretanto, agora estava sendo elucidada e desvelada em
mim, profundamente,
a presença positiva de Ita na mulher em que me tornei, na mãe amorosa
que ainda sou.
Não era uma figura lateral, foi uma presença fundamental, salvadora e
reparadora. Agora, e apenas agora, eu estava reconhecendo a Ita que
habitava em mim, um esteio essencial. Dívida impagável, obviamente. E a
isso só se pode responder com amor e gratidão. Mas, como compreender ou
tentar explicar que durante anos de processo de análise a figura de Ita
flanasse apenas como negativo – como nas fotografias antigas – da figura de
minha mãe?
Branquitude. Do que trata essa palavra? Breve consulta aos dicionários online e o significado já está lá:
branquitude é um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos, isto é,
materiais palpáveis que colaboram para construção social e reprodução
do preconceito racial, discriminação racial.
Certamente, esta é uma resumida e boa definição para o termo. No entanto, a
apreensão apenas teórica – ou racionalizada – do conceito é apenas o início de uma longa e dolorida jornada.
Iniciei a formação como psicanalista e uma longa travessia na minha análise
pessoal, já nos idos de 1980, sabendo, em certa medida, que este caminho –
tornar-se psicanalista – era acessível no Brasil, sobretudo, a pessoas da
classe média/alta e alta. Nesse universo, éramos, sobretudo, pessoas
brancas. Raras, as exceções. Nesses tempos, uma discussão aprofundada sobre
relações raciais e racismo em nosso campo era praticamente inexistente.
Para exemplificar, eu sabia bem quem era Virginia Bicudo, mas os detalhes
fundamentais de sua luta como mulher negra no início do século XX – mesmo
vinda de uma família que gozava de certos privilégios em relação a sua
posição social –, eu desconhecia completamente.
Difícil explicar o que não se pode compreender exatamente, pois havia uma
espécie de véu nada transparente, quase leitoso, encobrindo aspectos da
história, não só da história da psicanálise em São Paulo, mas,
principalmente, distorcendo e relativizando a maneira de se alcançar um
verdadeiro conhecimento a respeito dessas questões. Eu, que já me
considerava vitoriosa por ter uma origem, de certo modo, humilde, passei a
frequentar círculos sociais bastante ‘elitizados’. Desde os tempos da
graduação, porém, inquietavam-me as diferenças e injustiças sociais. Há
muito sabia que as diferenças de origem e lugares sociais eram
determinantes de nossas oportunidades na vida.
Cabe, entretanto, destacar, demorei muito mais tempo para compreender que
minha condição de mulher branca, de cabelos e olhos claros, descendente de
imigrantes europeus, pudesse ser um fator que muito havia facilitado minha
circulação em certos lugares sociais e acadêmicos. Sinceramente, isso não
me passava pela cabeça. Discutíamos muito sobre injustiça social e
desigualdade, luta de classes, elites predadoras no Brasil etc., mas falar
sobre racismo e sobre as injustas relações raciais, das quais eu fazia
parte do lado privilegiado apenas pela cor de minha pele, disso
definitivamente não tratávamos.
No mesmo período em que assisti ao filme Roma, o Brasil mergulhou
em tempos sombrios e obscurantistas, como sabemos. Movimentações de
resistência em nossa sociedade voltaram para combater as ameaças fascistas
que se abateram sobre nossa democracia. Nessas frentes, os movimentos
negros, que há décadas travam lutas contra o racismo estrutural e pela
igualdade de oportunidades para negras e negros no Brasil, trouxeram
contribuições importantes, confrontando-nos uma vez mais com o Unheimlich. A apreensão e os medos em relação aos riscos
sociais que enfrentávamos e enfrentaríamos eram, há muito tempo, a base
estabelecida na qual a população negra vinha e vem sendo obrigada a
suportar suas condições de existir.
Eu, que havia militado contra a ditadura militar no Brasil, lutado por
democracia e eleições diretas, que vinha há alguns anos participando de
discussões sobre violência de Estado, jamais arrefecida, principalmente nas
periferias das grandes cidades, ainda assim, fui surpreendida
(surpreendida?), mais uma vez. Foi preciso que mulheres negras e homens
negros voltassem a levantar o véu de hipocrisia, pois nosso medo de o país
retornar a um viés ditatorial e violento, nunca deixara de atormentar a
população preta e periférica, que o experimenta em seu cotidiano, desde
tempos longínquos, tempos que estavam fora da memória da branquitude.
A redemocratização nunca atingiu plenamente a população preta, pobre e
periférica do Brasil, mas não basta saber disso teoricamente. A
responsabilidade do resgate da origem da sociedade brasileira e do alto
custo humano implicado na escravidão é nossa: mulheres brancas, homens
brancos. Sempre me fizeram acreditar que supremacia branca era algo bem
distante dos brasileiros. Assisti a muitos filmes norte americanos, nos
quais homens brancos encapuzados nos rincões sulistas dos Estados Unidos
apareciam como figuras aterrorizantes, mas ultrapassadas. No entanto, em
certa medida, no Brasil dos dias atuais, grande parte da população branca e
privilegiada segue escondida sob capuzes.
E foi assim, me embrenhando em territórios dos quais havia me apartado, em
que me mantivera ilusoriamente protegida – sob o argumento de que sempre
fui progressista, não racista –, que me dei conta de que era imperativo ir além. Era preciso conhecer os efeitos em mim de minha própria branquitude. Por onde começar essa travessia? Por que me sentia
tão pouco preparada para aprofundar em mim a reflexão sobre questões
básicas e estruturais de nossa sociedade?
Nesse momento, minha estrela guia foi e vem sendo Ita. Ela, que sempre
esteve ali, mas que permanecera na ‘cozinha’, no ‘quartinho dos fundos’ de
minha memória, durante tampo tempo. Era preciso remover grande quantidade
de entulhos e escombros, sobre os quais os privilégios simbólicos de minha
branquitude permaneciam determinando a narrativa da memória ‘oficial’.
Aliás, a história oficial sempre contou que o Brasil foi constituído por
uma parcela de homens brancos e europeus verdadeiramente desbravadores e
heroicos. Esses brancos benevolentes haviam catequizado os povos indígenas
indolentes e disciplinado as populações negras que para cá haviam sido
trazidas. Essa história ainda hoje nos conta que, aos poucos, a sociedade
brasileira foi se ‘miscigenando’ e ‘abraçando’ a diversidade cultural que
construiu e habita o Brasil. Contudo, sempre houve uma versão sombria. Quem
nunca ouviu a versão de que também haviam chegado por aqui homens
disfuncionais, criminosos, marginais, que logo se misturaram aos índios e
negros indolentes e primitivos? Em outras palavras, o Brasil havia se
constituído pelo esforço de ‘homens brancos de bem’ em civilizar os povos
bárbaros, incluindo europeus desgarrados.
Esses clichês, de pobreza e sordidez flagrantes, a meu ver, sustentam ainda
hoje o neofascismo que chegou ao poder no Brasil. A diversidade, a cultura
popular, o conhecimento, a ciência, os movimentos sociais, passaram a
incomodar. A história do Brasil – nossa memória – permanece em grande parte
soterrada, para sustentar uma versão de nossa história, que naturaliza a
manutenção da população branca no poder político e econômico, ditando
leis, normas e condutas, do alto de sua branquitude, sequer reconhecida.
Etnias e raças são palavras que definiriam apenas povos desviantes.
Palavras excessivamente duras? Clichês pobres? Exageros semânticos? Talvez.
Porém, são habitantes antigos de nosso imaginário, fantasmas que seguem
assombrando as casas escuras onde parte da memória inconsciente
silenciosamente produz efeitos. Trazer Ita de volta, com sua poesia, seu
lirismo, sua generosidade e amorosidade, esse resgate foi fundamental para
mim. Lembrei das inúmeras histórias que contava de um Brasil que eu ainda
não conhecia, mais próximo da natureza, mais vibrante, pleno de recursos
criativos de sobrevivência e de vida. Lembrei de ensinar Ita a ler na mesma
época em que eu mesma estava sendo alfabetizada, em cenas maravilhosas de
conversas na cozinha da minha casa, que me surgem na memória, cheias de
cheiros e sabores. Lembrei do mutirão que formamos para encontrar sua
família, da qual havia se perdido há tempos, simplesmente por ter ficado 19
anos com minha família. Lembrei do dia em que me disse que se casaria logo
depois de meu casamento, pois sua missão estaria cumprida. Lembrei de levar
minha filha mais velha ainda bebê ao visitá-la na maternidade, após ter seu
único filho. Lembrei que ela, para minha alegria, seguiu sua vida com sua
própria família e que, apesar do enorme afeto que tinha pela minha família,
preferia se manter distante; os contatos foram rareando.
Ita, essa mulher negra e forte, guerreira como todas elas se encontram
obrigadas a ser, que trabalhou tanto para ajudar a criar os filhos de outra
mulher, trocando afetos, convivendo, sabia, no entanto, que aquela não era
sua família. Eu participei como pude de sua saga para recuperar uma vida
que de fato fosse sua, para ser protagonista de sua própria história, longe
de quartinhos e cozinhas alheias. Éramos uma família grande, uma prole
unida e amorosa que, assim, se defendia das tensões e perturbações advindas
da relação instável entre um casal que se uniu ainda muito jovem e
enfrentava uma série de dificuldades. No entanto, nosso clã era
defendido e protegido de muitas dessas coisas porque tínhamos Ita, pela sua
imensa disponibilidade amorosa. Ela sabia a importância do amparo, também
se sentia amparada em nosso clã. Meus irmãos e eu recorrentemente
nos perguntávamos sobre como pudemos atravessar ‘relativamente bem’ os
tempos difíceis. Hoje, a resposta vem muito fácil a minha cabeça: foi
porque tivemos Ita, nossa mãe. Afortunadamente, tive duas mães e,
sim, sou muito grata por isso.
Enquanto escrevia este texto, telefonei pra Ita. Queria saber como ela
estava e também contar que estava fazendo uma reflexão sobre nossa relação
e nossa história, estava escrevendo um texto. ‘Gostaria de ler?’
Ela ouviu, mas pareceu não fazer o menor caso disso. Depois de um silêncio
breve, ‘Ró [3],
você finalmente aprendeu a fazer ‘sufrito’ [4]?’
‘Ainda não, você acredita? Você precisa fazer um almocinho aí pra ver se
aprendo.’ ‘Vou te ditar a receita novamente. Dessa vez, você vai acertar.’
Necessário ressaltar que para Ita a história vivida com minha família tem
aspectos evidentemente insuperáveis de dores, traumas e tristeza. Reconheço
o imenso afeto em sua voz sempre que nos falamos, mas as marcas deixadas
pelos anos em que esteve anulada e impedida de seguir seus desejos
permanecem como cicatrizes importantes a protegê-la em seus novos caminhos.
Despedimo-nos, sabendo que nosso contato seguirá assim, dentro dos limites
colocados por ela, quando pode finalmente criar as condições para seguir
com sua vida. Às vezes, essa distância me entristece, mas quando finalmente
acertei fazer o ‘sufrito’, no preparo de um almoço que ficou muito
saboroso, dei conta de que Ita segue aqui em mim, muito próxima e muito
querida, protegendo, resguardando, alimentando certamente meu mais genuíno
antirrascismo. Ita é a minha mãe mais amorosa, a descrição mais
verdadeira e honesta de quem ela é para mim.
[1]
Itaúna,
em tupi guarani, quer dizer pedra preta.
[2]
Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto
Sedes Sapientiae. Professora no Curso de Psicanálise. Integrante do
coletivo Escuta Sedes.
[3]
Apelido que tem origem nas minhas bochechas rosadas da infância.
[4]
Nome dado por Ita a uma fritada de abobrinha e ovo, com especiarias
e um pouco de molho de tomate.