MONOGRAFIA

Ter ou não ter filhos, eis a questão


To have or not to have children, that is the question
Roberta Caria Nunes Fuganti

RESUMO
Toda mulher quer mesmo ter um filho? De acordo com Freud, a saída esperada do complexo de Édipo para as mulheres seria a maternidade, através da qual superariam sua ferida narcísica, sua inveja do pênis. Será que acontece mesmo assim nos dias de hoje? E quando o filho não vem e não há um motivo aparente para isso? O que a psicanálise, mais especificamente a psicossomática psicanalítica, teria a dizer a esse respeito? Este artigo faz um breve percurso sobre as teorias sexuais infantis e o conceito de complexo de Édipo em Freud, busca diferenciar o desejo de filhos narcísico e edípico e, por fim, aborda a infertilidade feminina sem causa aparente.


Palavras-chave: Psicossomática psicanalítica, Complexo de Édipo, Maternidade, Infertilidade.

ABSTRACT
Does every woman really want to have a child? According to Freud, the expected departure from the Oedipus complex for women would be motherhood, through which they would overcome their narcissistic wound, their envy of the penis. Is this really how it happens these days? What about when the child doesn't come and there is no apparent reason for it? What would psychoanalysis, more specifically psychoanalytic psychosomatics, have to say about this? This article takes a brief look at childhood sexual theories and Freud's concept of the Oedipus complex, seeks to differentiate the narcissistic and oedipal desire for children and, finally, addresses female infertility without an apparent cause.


Keywords: Psychoanalytic psychosomatics, Oedipus complex, Maternity, Infertility


POEMA ENJOADINHO

Vinícius de Moraes

Rio de Janeiro, 1954

 

Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem xampu
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda


Introdução

 

A questão que abordo nesta pesquisa, a saber, o desejo de filhos (ou a falta dele), é de meu interesse há bastante tempo, diria até que é anterior ao meu entusiasmo pela psicanálise. Certamente, ela ganhou relevância ainda maior quando me vi diante do impasse de ter ou não ter filhos.

Para alguns, parece que isso nunca foi uma questão. Tinha a impressão de que muitas pessoas já nasciam sabendo que queriam ter filhos. Mas, para mim, ouso dizer que talvez tenha sido a pergunta mais difícil com a qual me deparei, um enigma. Fui adiando a resposta por muitos anos, mas, por fim, chegou um momento em que tive de encará-la, seja pelo tempo que estava passando e, com isso, a possibilidade de engravidar reduzindo-se, seja pelo desejo cada vez maior do meu marido de ser pai.

Do ponto de vista prático, encontrei a resposta que buscava há bastante tempo. No entanto, pretendo agora investigar essa mesma questão do ponto de vista teórico, da teoria psicanalítica, mais especificamente o que Freud e outros psicanalistas contemporâneos que estudam sua obra têm a dizer acerca do desejo de filhos para as mulheres. Para tanto, iniciarei este trabalho retomando brevemente as teorias sexuais infantis e o conceito de complexo de Édipo em sua obra. Diferenciarei o desejo de filhos narcísico e edípico e, por fim, abordarei a infertilidade feminina também a partir da perspectiva da psicanálise.

 

De onde vêm os bebês?

Foi em "Três ensaios sobre a sexualidade infantil" (1905) que Freud apresentou a ideia nada convencional para a época de que a sexualidade não começaria apenas na puberdade, e sim na primeira infância, seguindo um desenvolvimento em fases até atingir a maturidade genital, isto é, a sexualidade adulta. Segundo Freud, é por meio do apoio em uma função de conservação à vida que a atividade sexual se desenvolve. Assim, por exemplo, a necessidade da criança de se alimentar fará com que ela experimente, ao mamar, o prazer na região da boca. As regiões do corpo usadas pelas crianças para se satisfazer serão chamadas de zonas erógenas, e é a partir das zonas erógenas que as crianças constroem suas fantasias, isto é, "o prazer que a criança obtém, por meio das diferentes zonas do corpo, é acompanhado de fantasias" (Alonso; Fuks, 2004, p. 86), as quais serão recalcadas.

Freud diferencia, assim, a sexualidade infantil - autoerótica - da sexualidade adulta - voltada à escolha objetal. Foi na revisão de 1915 que Freud inseriu no texto a concepção de uma organização da libido que se daria em fases sucessivas, correlacionadas a uma zona erógena específica. Deste modo, ele indica três fases, a saber: a oral, a anal e a genital. E ainda descreve, para cada uma das fases, um tipo de relação de objeto. Além disso, Freud complementa que seria na puberdade, ou seja, na fase genital, que haveria uma integração dessas pulsões parciais que resultaria na escolha de um objeto total.

Chegamos, então, a um conceito central na teoria e também na clínica psicanalítica, que é a formulação do complexo de Édipo. Apesar da centralidade e da importância desse conceito, Freud nunca apresentou uma exposição sistematizada dele.

Laplanche e Pontallis definem o complexo de Édipo como sendo o:

 

Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontram-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo. (Laplanche; Pontallis, 2001, p. 77)

 

Ou seja, o menino tem sua mãe como primeiro objeto de amor e, por disputar o amor dela com o pai, passa a odiá-lo. No entanto, ele teme ser punido pelo pai, que, sendo maior e mais forte, poderia privá-lo de seu bem mais precioso: o pênis. Frente à angústia desencadeada pela ameaça de castração, o menino renuncia a realizar seus desejos sexuais incestuosos em relação à mãe e, desta forma, entra no período de latência. Embora o modelo do menino tenha servido de base para essas formulações, durante muito tempo Freud acreditou que o complexo poderia ser, simetricamente, transposto para a menina. Mais tarde, no entanto, ele constatou que o caminho seguido pela menina seria diferente do caminho do menino.

 

Por que as mulheres querem ter filhos?

Foi em 1923, no texto intitulado "A organização genital infantil", que Freud colocou o pênis como um organizador central a partir do qual se estabeleceria a diferença entre os sexos, acrescentando, assim, uma quarta fase à série do desenvolvimento sexual infantil, qual seja, a fase fálica - ocasião na qual atingiria o complexo de castração, situando-a entre a fase anal e a genital.

 

É, contudo, no texto de 1925, "Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos", que o desejo de ter filhos surge associado à inveja do pênis, isto é, na posição de sintoma dessa dor intolerável, e se transforma em emblema fálico deslocável por entre representações que compõem a dimensão erótica feminina. (Labaki, 2008, p. 276-277)

 

Em 1933, Freud teorizou a respeito dos três caminhos possíveis para a menina como saída do complexo de Édipo, ou, dito de outra forma, dos três caminhos possíveis para a menina a partir do complexo de castração, que, neste caso, corresponderia à inveja do pênis. Se a angústia de castração é responsável pela saída do menino do complexo de Édipo, para a menina, a inveja do pênis é que faria com que ela entrasse nele. E, a partir daí, ela teria, então, três caminhos possíveis para sair dele, quais sejam: i) a inibição sexual ou a neurose (não consegue desfrutar da experiência sexual), ii) complexo de masculinidade (homossexualidade; identificação com o pai e mãe como objeto de desejo/amor) ou iii) a reversão libidinal para o pai e o desejo de ter um filho com ele, sendo que apenas essa última saída seria considerada saudável para a mulher, a feminilidade normal. Sendo assim, o filho seria o atributo fálico da mulher que veio curar seu narcisismo ferido, um substituto do pênis, um "ressarcimento da natureza por tê-la feito inferior" (Sigal, 2002). Portanto, o que caberia a uma mulher desejar já estaria decidido (Viana, 2002). Segundo Labaki, esta formulação "conserva a mulher em um estado de ressentimento vitalício que definirá suas escolhas e todo um estilo feminino de ser" (Labaki, 2008, p. 277).

Viana também questiona essa formulação: "[...] se é ao atributo fálico que uma mulher visa quando decide ter um filho, por que ela não pode escolher outros objetos, os que bem quiser, para se satisfazer falicamente?" (Viana, 2002, p. 182).

Parece não fazer muito sentido colocar a maternidade como um prêmio de consolação. Afinal, ela também traz muitas perdas. Mas, então, por que tantas mulheres querem ter filhos? Que desejo é esse para além de um narcisismo ferido?

Freud já nos alertava: "Um forte egoísmo protege contra o adoecimento, mas, afinal, é preciso começar a amar para não adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar" (Freud, 2014, p. 29).

Em seu artigo "Ter filhos é o mesmo que ser mãe?", Labaki irá sustentar que "o desejo que anima uma mulher a engravidar nem sempre é da mesma natureza daquele que a manterá interessada, dedicada e atenta a seu bebê" (Labaki, 2008, p. 273). Para a autora, não há uma relação de continuidade entre gestação e maternidade, e sim de cisão, de ruptura. Enquanto a gestação poderia ser vivida como "um parêntese na vivência da falta" (Pinheiro, 1911), um estado de plenitude narcísica, a maternidade, por sua vez, seria organizada segundo regras de outro governo que não o narcísico, que levaria a mulher a perder, uma vez que, para acontecer, pede um investimento no devir e no exercício permanente de diferenciação. Desta forma, a maternidade solicita um esforço "[...] de separação de um ideal projetado no bebê que reflete as ilusões narcisistas da mãe e suas representações de filha ideal" (Labaki, 2008, p. 274). Se, por um lado, tal afirmação parece fazer muito sentido, afinal, são mesmo duas experiências bem distintas, por outro, em um primeiro momento, ao invés de ajudar a entender que desejo é esse que leva as mulheres a quererem filhos, pode gerar ainda mais dúvida. Mas, então:

 

Por que as mulheres querem ser mães?

Alguns psicanalistas contemporâneos[1] ajudaram-me a encontrar a resposta para esse enigma ao percorrer certos textos de Freud anteriores a 1923. Isto é, textos anteriores aos que citei quando me referi ao desejo de ter filhos.

Em "Sobre as teorias sexuais infantis" (Freud, 1908), o complexo de castração aparece como um momento na evolução da sexualidade humana ou como uma teoria sexual infantil - e não como uma categoria universal que define a sexualidade feminina. São as elaborações para defender-se da angústia de castração e da inveja do pênis, ou seja, a dissolução do complexo de Édipo, que irão apontar os caminhos possíveis para as identificações a serem processadas, de acordo com a história de cada um.

Em "Sobre transformações dos instintos, em particular no erotismo anal" (1917), Freud retoma muitos dos enunciados já formulados em 1908 e propõe outra saída para o erotismo feminino, que não se encaixa nos parâmetros do funcionamento histérico. De acordo com Freud,

 

[...] quando as condições da neurose não estão presentes, o desejo de ter um pênis será mudado para o desejo de ter um homem, mudança que implica uma passagem do amor narcisista para o amor de objeto e o desenvolvimento do erotismo feminino. Neste caso, o pênis e o filho ocupam o lugar de intermediação - de ponte - no deslizamento libidinal: do pênis ao homem, ou do filho ao homem, ainda que essa passagem possa não ser definitiva. (Freud apud Alonso; Fuks, 2004, p. 316)

 

Sendo assim,

 

Há um leque de possibilidades na relação que se estabelece entre "pênis e filho", que vai da identidade - situação em que o filho fica no lugar do falo imaginário da fase fálico-narcísica, garantindo a preservação de um narcisismo intocado - até o filho como elemento intermediário ou ponte, mediador da passagem do narcisismo ao amor de objeto, às trocas e ao intercâmbio. No primeiro caso, a identidade pênis-filho implica um sobreinvestimento fetichista (recusa) ou neurótico (recalque) do filho, enquanto a função de ponte propicia uma expansão mais livre e móvel dos investimentos. (Alonso; Fuks, 2004, p. 317)

 

De acordo com Sigal (2002), até 1917, o pênis ainda não tinha sido colocado como significante em torno do qual os outros se organizariam, ou seja, Freud ainda não tinha definido o desejo do falo como um desejo universal constitutivo da subjetividade feminina. E, portanto, não poderíamos generalizar que todo filho seria um ressarcimento de uma inferioridade, substituto do pênis invejado. Na histeria, o filho poderia representar o desejo de ter o falo, mas histeria e feminilidade não são a mesma coisa. Assim como mulher não é sinônimo de mãe.

Desta forma, Freud propunha que o desejo de uma mulher não neurótica seria por um homem, melhor dizendo, seria de construir uma relação de objeto com um outro, o que Labaki chamou de regime da mutualidade, da reciprocidade, de trocas com esse outro, no qual a maternidade poderia, ou não, ser uma das vias de erotismo em direção a ele. Assim, o erotismo feminino poderia incluir o desejo de ser mãe, mas não se restringiria a ele. A maternidade corresponderia muito mais a perder filhos do que a ter filhos, à separação do que à união.

 

 E quando o filho não vem? Uma visão psicanalítica da infertilidade

 

Em nossas vivências inconscientes, tudo é possível, coexistindo, sem nenhuma contradição, o passado e o presente, o antes e o depois, o aqui e o acolá, as cenas da infância e as fantasias sobre o futuro, os filhos que fomos e os pais que somos ou esperamos ser. Nas vivências inconscientes podemos ser, ao mesmo tempo, homem e mulher, velhos e moços, habitar corpos que nunca tivemos, morar em lugares e tempos que nunca conhecemos ou, mesmo, que inexistem. (Volich, 2021, p. 31-32)

 

Porém, a realidade não obedece ao princípio do prazer. Desejar ter filhos e efetivamente tê-los são coisas bastante diferentes. Geralmente, a infertilidade[2] humana é pensada com base no modelo médico-biológico. No entanto, ela também é atravessada pela experiência individual, pelo psiquismo e, portanto, também pode ser abordada pela perspectiva da psicanálise e, mais especificamente, da psicossomática psicanalítica.  Sendo assim, o que a psicanálise tem a dizer sobre esse tema? E como a psicossomática psicanalítica pode contribuir para essa discussão? Falarei apenas da infertilidade na mulher, ou seja, a infertilidade masculina não será objeto de discussão neste trabalho. O que pode acontecer no psiquismo da mulher quando uma gravidez natural não ocorre? Descartadas as causas orgânicas, poderíamos falar de uma infertilidade psicogênica? E, por fim, podemos pensar a infertilidade "orgânica" como sendo uma somatização?

Segundo Vives, e de acordo com a discussão apresentada nos tópicos anteriores, "o desejo de filho na mulher é fruto da elaboração de um desejo inconsciente, particular e individual, que tem diferentes ressonâncias e formas de processamento" (Vives, 2019, p. 46). Surge da sexualidade infantil, ou seja, é fruto das fases pré-edípica e edípica. O desejo de filho como resultado da resolução do complexo de Édipo feminino é bastante diferente do desejo de filho pré-edípico. Enquanto aquele desliza ao longo da equação simbólica na qual pênis pode ser igual a bebê, este é fruto da identificação com a mãe - ser mãe como a mãe, ter um filho da mãe e dar um filho para a mãe - ou seja, um complemento narcísico.

O desejo de filho precisa, no entanto, esperar até a puberdade, quando a maturidade biológica é atingida, para que possa se concretizar. A partir desse momento, pode-se ter a impressão de que basta o casal ter relações sexuais durante o período fértil para que uma gravidez aconteça. Entretanto, as coisas não são exatamente assim. E, quando a gravidez não acontece depois de algumas tentativas, geralmente surge uma grande frustração (Vives, 2019).

De acordo com a experiência clínica de Alkolombre (2019), uma nova equação simbólica se dá nos casos em que a mulher não consegue engravidar, a saber: fértil versus infértil. "O mundo transforma-se em quem tem filhos e quem não os tem" (Alkolombre, 2019, p. 75). É uma reedição do complexo de castração, ou seja, uma ressignificação da equação fálico versus castrado, que aqui se dá pela falta de filho, e não de pênis. Experiências cotidianas passam a ser vividas por essa nova perspectiva, e a busca por uma gravidez é vivida como uma ferida narcísica. De acordo com a autora, "sempre existem a tentação e a possibilidade de que a criança ocupe o lugar de uma nova ilusão, que visa completar imaginativamente a mulher. Assim, o desejo de um filho pode ter outros destinos, ligados a aspectos narcísico-passionais" (Alkolombre, 2019, p. 77).

Os avanços da medicina transformaram o processo reprodutivo em um ciclo quase que inteiramente observável e, de certa forma, também manipulável. As causas orgânicas para a infertilidade puderam ser cada vez mais identificadas e, em muitos casos, tratadas. Com isso, as infertilidades cuja causa orgânica não pode ser detectada acabam consideradas, por exclusão, como sendo de origem psíquica inconsciente e, por isso, chamadas de infertilidades psicogênicas. Isso não é novidade. Langer nos lembra que, de certa forma, é comum há bastante tempo ouvirmos que a infertilidade foi um castigo de Deus, uma punição pelos pecados e, portanto, um problema de consciência, ou seja, de ordem psicológica (Langer, 1981, p. 142). O que tem mudado nesse sentido, segundo a autora, é a posição da medicina diante dessa explicação. O que antes era tido como uma visão ingênua e equivocada  passou a ser considerado como uma possibilidade. Nesse sentido, Therese Benedeck e colaboradores, apud Langer (1981), puderam constatar, por exemplo, que, enquanto os animais têm uma taxa de 99% de êxito em uma inseminação artificial, as mulheres têm apenas de 4% a 30% de êxito, mesmo quando a inseminação é realizada em condições físicas consideradas ótimas.

 

Assim, sem dúvida marcadas por fatores genéticos e hormonais, por variações fisiológicas e anatômicas de diferentes etapas e momentos da vida do indivíduo, do casal e da família, bem como por modelos socioculturais e condições econômicas, a fertilidade e as funções reprodutivas também transcendem essas funções biológicas, a serviço do indivíduo, da espécie e dos grupos humanos, para manifestar em fantasias, desejos, prazeres e suas diferentes formas de manifestação nas relações amorosas e configurações eróticas, na conjugalidade e na parentalidade. (Volich, 2021, p. 34 - negrito próprio)

 

Segundo Ribeiro, a infertilidade dita psicogênica foi explicada por autores psicanalíticos como sendo resultado de "conflitos inconscientes ligados à sexualidade, afetos ambivalentes em relação à maternidade, conflitos edípicos não elaborados e conflitos ligados à identidade de gênero" (Ribeiro, 2012, p. 89-90).

De forma semelhante, Langer (1981) e Perelson (2013) apontam para a existência bastante frequente na clínica de mulheres que não conseguem engravidar, e cujos laços com a mãe são bastante intensos e, por outro, praticamente inexistentes com o pai. Ou seja, existiria uma ligação entre infertilidade feminina e uma fixação na fase pré-edípica. Segundo Faure-Pragier, apud Perelson (2013, p. 250), a mudança de objeto da mãe para o pai, que, para as meninas, deveria acontecer na entrada do complexo de Édipo, teria falhado, ficando, desta forma, o laço pré-genital com a mãe em seu lugar originário. Nesses casos, o filho não estaria no lugar do substituto do pênis que a mãe recusou a dar e que agora espera receber do pai, mas pode configurar uma tentativa de romper o laço excessivamente fusional e ambivalente com a mãe, que, por uma carência da função paterna, não se deu a contento. Por outro lado, a expectativa de uma gravidez despontaria nessas mulheres a possibilidade de identificação com a mãe e o temor de replicar com o filho a mesma relação devastadora da qual foi vítima, e que poderia levá-la a sofrer, por parte do seu filho, o mesmo ódio que ela dirigiu à mãe. Faure-Pragier, apud Perelson (2013), observa ainda que, nesses casos, a infertilidade pode parecer como causa de uma "depressão de inferioridade latente", no entanto, na realidade, ela seria consequência. Desta forma, nem sempre o filho desejado é o equivalente simbólico do falo que falta. Estamos diante de pacientes cujo sintoma remete mais à falha da inscrição da função paterna, e menos ao conflito edípico.

Em seu livro Psicossomática e teoria do corpo, Christophe Dejours (2019b) sustenta que a infertilidade é uma somatização cujo ganho poderia ser o de evitar o conflito que a chegada de uma criança pode provocar na economia conjugal. Para ele, a infertilidade com frequência evidencia a impossibilidade do casal de encontrar um lugar psíquico para a criança sem que o equilíbrio de um ou de ambos os pais fique ameaçado. Ou seja, o terceiro, neste caso, o filho, poderia ser perigoso para a saúde mental dos pais. Para este autor, esse seria o caso dos casais cuja economia seria organizada em torno do equilíbrio da violência entre os parceiros, e não das questões eróticas. Dejours ressalta também que recusar a infertilidade não quer dizer a mesma coisa que querer filhos. A recusa da infertilidade é consciente, se quer um filho pelos atributos de um genitor (procriação). Já a recusa da criança é inconsciente, não há o desejo de ser mãe/ pai (parentalidade). Isto posto, ele menciona que o risco de uma reprodução medicamente assistida (RMA) pode ser justamente levar até o fim essa dissociação entre as duas vertentes da sexualidade, quais sejam, a procriação e a economia erótica.

O conceito de subversão libidinal de Dejours (2019a) pode nos ajudar a entender por que é possível pensar na infertilidade como sendo uma somatização. Com base no conceito freudiano de apoio pulsional sobre a função fisiológica, Dejours defende a ideia de um segundo corpo, o corpo erótico, construído a partir do corpo fisiológico.

 

Nas palavras desse autor,

 

O desenvolvimento do corpo erótico é resultado de um diálogo em torno do corpo e de suas funções que se apoia nos cuidados corporais dispensados pelos pais e cujas etapas principais se situam entre os três e cinco primeiros anos de vida. Isso quer dizer que o funcionamento psíquico da mãe, suas fantasias, sua própria sexualidade, sua história, sua neurose infantil marcam de forma muito peculiar o diálogo que se estabelece com a criança, de tal maneira que até mesmo em sua carne imprimem-se as marcas do inconsciente materno. (Dejours, 2019a, p. 20)

 

Dejours (2019a) questiona ainda se a subversão erótica do corpo fisiológico poderia provocar consequências nas próprias funções fisiológicas. "A pulsão deixa de se apoiar na função e, com isso, parece capaz de facilitar uma somatização" (Dejours, 2019a, p. 21). O fator econômico seria responsável por explicar esse fenômeno. Assim, Dejours vai além e defende também o caminho inverso, ou seja, com o tempo, o corpo erótico levaria a modificações anatômicas; modificações no corpo fisiológico. "O psíquico consegue, por intermédio do apoio, cristalizar-se, materializar-se, anatomizar-se" (Dejours, 2019a, p. 23).

Sendo assim, ele defende a ideia de que as doenças somáticas não conversivas "também exprimem o sentido da vivência subjetiva da carne, dos afetos, do sofrimento e do prazer na relação com o outro" (Dejours, 2019b, p. 93).

Corroborando com as ideias de Dejours, Faure-Pragier, apud Perelson (2013), questiona: "por que a presença de uma anomalia do funcionamento endocrinológico ou da permeabilidade das trompas, que afirmam a organicidade, excluiria uma causalidade psíquica?" (Faure-Pragier apud Perelson, 2013). Ou, ainda, "através de que milagre o psíquico se manifestaria na ausência de concepção sem provocar nenhuma disfunção fisiológica?"  (Dejours, 2019b, p. 248). Desta forma, ela critica a divisão de corpo e alma/psique, dito de outra forma, a concepção de psiquismo como uma ausência de organicidade, que o conceito de infertilidade psicogênica pressupõe.

Sigal não descarta que a infertilidade possa, sim, decorrer de "conflitos com a sexualidade, transtornos identificatórios, filhos fetiches, problemas narcísicos, patologias histéricas ou fobias graves" (Sigal, 2003, p. 3). No entanto, lembra-nos de que não é necessariamente assim. Ela aponta para as mudanças que transformaram a sociedade nos últimos 50 anos e que conferiram um novo lugar para a mulher, produzindo transformações em sua subjetividade e possibilitando outros desejos inconscientes. A mulher não está mais, impreterivelmente, no "lugar da procriadora, do casamento, do ideal de beleza e de boa esposa. [Atualmente] se esperam independência, realização profissional, sucesso econômico, felicidade no amor e tantas outras coisas" (Sigal, 2003, p. 2). Ou seja, ela descobre outras realizações possíveis para si além da maternidade. Diante de tantas possibilidades, com frequência, o projeto da maternidade tem sido adiado e, com isso, muitas vezes, a dificuldade de engravidar aumenta. De acordo com Sigal (2003), numerosos estudos confirmam que a fertilidade feminina diminui consideravelmente depois dos 30 anos. "As mulheres se encontram com um corpo biológico que trai o desejo inconsciente." (Sigal, 2003, p. 2). Sendo assim, "as mulheres que encaram a maternidade em tempos tardios não necessariamente têm conflitos com a maternidade ou a feminilidade" (Sigal, 2003, p. 3).

Por fim, citando Odilon de Mello Franco Filho, Ribeiro (2012) afirma que, para a psicanálise, o que importa é a busca de sentido da experiência, que é subjetiva e singular, e não a causalidade, como acontece na medicina e outras ciências naturais. 

 

Considerações finais

De acordo com Ana Maria Fernandes, "muito do que tem sido pensado como estrutura inconsciente universal não é mais do que o modo sócio-histórico de subjetivação de homens e mulheres na modernidade" (2000, p. 127 apud Sigal, 2002, p. 157).  Ou seja, vamos encontrar a explicação para as diferenças entre homens e mulheres muito mais nas relações de poder entre gênero do que em uma estruturação inconsciente ou de ordem simbólica. Sendo assim, a autora propõe que haveria muito mais semelhança na sexualidade de Madona e Mick Jagger do que naquela de Madame Bovary.

Desde a criação da psicanálise, muitas mudanças sociais permitiram à mulher ocupar outros lugares, outras cenas. Hoje podemos, claramente, separar a sexualidade da maternidade, a mulher da mãe. O trabalho vem ocupando cada vez mais esse lugar fálico que antes era visto como o lugar do filho. É um engano, portanto, confundir a maternidade com a feminilidade.

De acordo com Sigal, a maternidade é também "o prazer de doação, e o lugar da criação, da procriação e da criatividade como potencialidade do humano, e não como falta do feminino" (Sigal, 2002, p. 168). Ou, nas palavras de Labaki, "uma perda narcísica simultaneamente a um investimento no objeto" (Labaki, 2008, p. 275).

Enfim, acredito que seria reduzir muito a questão afirmar que a mulher que deseja um filho deseja, necessariamente, o pênis que invejava na sexualidade infantil.

 

Para entender a que desejo ou fantasma remete o desejo de se ter um filho, seja qual for a modalidade de concepção, deve ser analisada a relação desta mulher com sua sexualidade infantil, no campo do Édipo, na história dos caminhos identificatórios, assim como a relação com a figura materna, paterna e os aspectos narcisizantes. (Sigal, 2003, p. 7)

 

Penso que a maternidade é apenas um dos possíveis pontos de partida, e não de chegada, para a feminilidade. De qualquer forma, é pertinente ter em conta que "A perda da capacidade reprodutiva promove um abalo considerável na economia narcisista do sujeito, justamente por ser um importante referencial identificatório de feminilidade e masculinidade" (Ribeiro, 2012, p. 100).

Longe de ser o fim de um percurso, acredito que este trabalho seja apenas o começo, pois, se, por um lado, consegui dar algum sentido para esses desejos, por outro, deparei-me com outras questões que ainda dizem respeito ao feminino e que, na psicanálise, esbarram no complexo de Édipo e em sua visão falocêntrica. Existiria uma psicanálise sem Édipo?

 

Agradecimentos

A todos os professores e colegas do curso de Psicossomática Psicanalítica, que compartilharam seus conhecimentos e experiências com grande generosidade, em especial à Aline Camargo e ao Rubens Volich, pelo incentivo constante à minha produção escrita, e à Maria Elisa Labaki, que me inspirou a escrever sobre este tema.

Às companheiras de estudo das questões do feminino, Katarina Kehrle e Vivian Huszar, pela parceria, pelas trocas constantes e ricas discussões, que tanto contribuíram para este trabalho.

À Lilian Carbone, pelo grupo de estudo do Christopher Dejours e por sua imensa generosidade em compartilhar seu conhecimento teórico e clínico.

À minha mãe Valderêz, ao meu marido Rafael e aos meus filhos Joaquim, Isabela e Mariana, que fizeram com que fosse possível eu chegar até aqui.


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Roberta Caria Nunes Fuganti
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicóloga e psicanalista. Especialista em Psicossomática Psicanalítica e membro deste departamento no Instituto Sedes Sapientiae. Pós-graduada em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade pelo Instituto Gerar de Psicanálise. Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF). E-mail: roberta.fuganti@gmail.com


Notas

[1] Entre eles, Silvia Alonso, Mario Fuks, Maria Elisa Labaki, Ana Maria Sigal e Marli Ciriaco Vianna.

[2] Considerada aqui como sendo a ausência de uma gravidez espontânea depois de, pelo menos, um ano de tentativa.

Referências bibliográficas

ALKOLOMBRE, P. O desejo de filho e a paixão de filho na parentalidade contemporânea. In: VIVES, R. V. (Org.). Reflexões psicanalíticas sobre reprodução assistida. Porto Alegre: Sulina, 2019.

ALONSO, S. L.; FUKS, M. Histeria. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

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