ARTIGOS

A Psicossomática Psicanalítica e a Medicina narrativa como campos operadores da humanização em saúde


The Psychoanalytic Psychosomatic and the narrative medicine as operating fields of the humanizing health care
Livia Chaud Albano

RESUMO
O presente trabalho faz uma reflexão teórica acerca da Psicossomática Psicanalítica e a Medicina Narrativa enquanto possibilidades de humanização do atendimento em saúde, mais especificamente do atendimento médico. Partimos do princípio de que o ser humano é um ser biográfico, e o(a) profissional precisa estar atento a esta dimensão existencial para exercer sua função de cura. Para isso, a compreensão psicanalítica do sujeito, enquanto linguagem, vem ao encontro da Medicina Narrativa, que incorpora a literatura enquanto recurso humanizador do trabalho clínico. Assim, frisamos ambas como campos operadores, ou seja, como estratégias de trabalho que valorizam os conhecimentos científicos sem que estes tamponem o encontro humano como compartilhar de biografias.

Palavras-chave: Medicina Narrativa, Psicossomática Psicanalítica, Humanização.

ABSTRACT
This work presents a theoretical reflection on Psychoanalytic Psychosomatic and the Narrative Medicine as possible ways of humanizing health care service, more specifically medical service. We begin by considering the fact that the human being is biographical and thus the professional should be attentive to that in order to perform their healing task. For that to happen, the psychoanalytic understanding of the subject as language meets the Narrative Medicine which comprises the literature as a humanizing resource of the clinical work. Therefore, we point them out as operating fields, that is, as working strategies which value scientific knowledge without concealing the human contact as a biographies sharing.

Keywords: Narrative Medicine, Psychoanalytic Psychosomatic, Humanizing


Introdução

 

Viver é aventurar-se em uma mata selvagem. Por mais concretos, telas ou Windows que se coloquem à nossa volta, estamos sempre submersos em um oceano obscuro, em uma mata virgem ou mesmo soltos em um céu cheio de nuvens, sem ao menos saber voar. Viver é estar em meio à natureza. Aliás, viver é ser natureza. Mas, naturalmente, para o ser humano, viver constitui um eterno problema. Não apenas vivemos, mas buscamos um sentido para aquilo que vivemos. Precisamos compreender nossa existência, e o que a abarca é a linguagem. É através da linguagem que conseguimos sustentar essa difícil tarefa que é viver. Assim, a biologia humana tem sempre a ver com sua biografia. A lógica da bio (da vida) no ser humano é grafada, escrita, falada e narrada. Segundo o antropólogo Pedreño, o humano é um "bípede com mãos que conta histórias" (Benedetto; Gallian, 2018). Ora, para contar histórias, precisamos de alguém que as escute, pois um texto só existe se houver um leitor.

Por vezes, este leitor/ouvinte de nossas histórias somos nós mesmos - e, atualmente, uma das ferramentas existentes para que isso possa acontecer é a Psicanálise. Se o ser humano é um contador de histórias, a Psicanálise se ocupa exatamente disso: como cada um conta para si (através do contato com o outro) a sua própria história?

Quando estamos doentes, porém, nosso interlocutor, geralmente, é um(a) médico(a). Rita Charon (2015) nos lembra que qualquer atendimento médico sempre começa com uma conversa. Podem ser poucas palavras, em um atendimento de emergência, por exemplo, mas o mínimo de narrativa é necessário para que o trabalho clínico aconteça. Mais do que "curadores", portanto, os médicos devem ser, fundamentalmente, bons ouvintes, ou bons leitores, daquela história que lhes é apresentada por voz, gestos, números e/ou imagens.

 

Os médicos entram nas vidas de seus pacientes em momentos de enorme transtorno. O fio narrativo de uma vida comum é interrompido por uma doença ou mesmo pela ameaça de uma doença. Uma criança com leucemia; um idoso fratura o quadril [...]. Os médicos entram nessas situações narrativas complexas tendo que imaginar como elas devem ser por dentro. Isso requer, além de imaginação, uma certa fluência como leitor e receptor dos relatos de outras pessoas - algo que não é ensinado nas disciplinas obrigatórias das faculdades de medicina (pelo menos ainda não). (Charon, 2015)

 

Como, então, adquirir ou desenvolver esta "certa fluência como leitor" de que nos fala a autora? Pode a Psicanálise, e mais especificamente a Psicossomática Psicanalítica, contribuir para que a interação médico(a)-paciente seja baseada em uma escuta atenciosa, qualificada e compromissada com a história que está sendo contada?

 

Por onde anda a Medicina?

 

Para começar a responder a estas questões - ou melhor, para começar a articular as ideias que se abrem a partir de tais questionamentos (já que "respondê-las" pode parecer "encerrá-las", e disto estamos longe) -, vamos dar alguns passos para trás. Quando compreendemos que o ser humano é um ser histórico ôntica e ontologicamente, partimos do princípio de que nossa espécie não só conta histórias, mas é constituída por elas. Somos uma trama de enredos que se enlaçam e desenlaçam através de palavras, gestos, sentimentos e organizações sociais, políticas e culturais. Pensadores da filosofia e da literatura, como Walter Benjamin (1994) e Paul Ricoeur (1999), afirmam que o que constitui a espécie humana são, justamente, a necessidade e a capacidade fundamentais de compartilhar histórias.[1] O ser humano só se dá no contato com o outro, e é através dessa troca que existimos e nos desenvolvemos.

Entretanto, alguns contextos sociais nos permitem maior ou menor "aplicação" ou desenvolvimento dessa qualidade humana. Nossa cultura atual, altamente tecnicista, costuma restringir os espaços de fala e escuta verdadeiramente genuínos, transformando as experiências humanas em cases que cabem neste ou naquele conceito, que deve ser tratado por este ou aquele método predeterminado, para se atingir este ou aquele resultado esperado. Tal lógica, obviamente, nos fez avançar no desenvolvimento de tecnologias em diversas áreas - inclusive na saúde, nossa área de interesse. Mas o que perdemos com ela?

Talvez a primeira ou a grande "coisa" que não temos mais é tempo (o que seria ontologicamente contraditório, já que ser história implica em ser tempo). Mas aqui, cotidianamente, não temos mais tempo - de reler nossas histórias, de contá-las a alguém, nem de ouvir as histórias dos outros.

No atendimento clínico psicanalítico, é comum escutar das pessoas que chegam à análise pela primeira vez: "eu nunca tive este tempo para mim mesma", "nunca consegui parar me cuidar". O espaço analítico torna-se, assim, uma pausa temporal, um respiro, em que cabe contar a própria história, se ouvir e ser escutado.

Nos serviços de saúde, uma das maiores reclamações dos profissionais é a falta de tempo. Os(As) médicos(as), por exemplo, pontuam o tempo apertado das consultas como um dos fatores mais importantes para a queda da qualidade do atendimento. Todas as perguntas para investigação clínica, as hipóteses diagnósticas, as possibilidades de tratamento e os possíveis prognósticos superlotam o raciocínio clínico e todo o tempo hábil de consulta. Não sobram sequer minutos para ouvir, de fato, o que o paciente está querendo ou precisando dizer.

 

Não podemos negar que o modelo biomédico assegurou a diminuição de grande parte do sofrimento humano [...]. Todavia, profissionais e usuários dos sistemas de saúde em todo o mundo têm consciência de que muitas promessas jamais poderão ser cumpridas e sentem que algo está faltando [...]. McWhinney considera que a fragmentação da profissão e a ênfase na tecnologia tiveram um efeito muito sério, que é a deterioração do relacionamento médico-paciente, sendo que este foi - e sempre será - a base de uma boa prática da medicina. Na verdade, o que o paciente quer é ser cuidado por alguém que, além de competência técnica, saiba entendê-lo como um ser humano com sentimentos, que busca uma explicação para sua enfermidade e que anseia por respeito e amparo em seu sofrimento. (Benedetto; Gallian, 2018)

 

Neste trecho, os autores nos abrem outro aspecto importante da prática médica que vem influenciando na humanização (ou não) dos atendimentos em saúde: a fragmentação da profissão. Atualmente, a Medicina transformou-se em um conjunto de especialidades, que são mais bem vistas e mais valorizadas (inclusive financeiramente) quanto mais específicas forem. O médico é, cada vez mais, treinado para saber de um restrito aspecto de determinadas doenças, ou seja, qualquer saber generalista é desvalorizado, rechaçado, e a escuta dos seres humanos em sofrimento vai sendo encaixotada em pequenos compartimentos específicos - o rim, o osso, o nódulo, o pé. Nosso corpo ou nossa existência é desmembrada muitas vezes pela ciência médica, para ser "mais bem" avaliada e curada. E para isso - cabe acrescentar - o médico pode também precisar se desmembrar, retirando de si tudo o que escapa ao seu conhecimento técnico específico: seu corpo, suas emoções, suas histórias. Resta uma cabeça pensante e especializada avaliando um pedaço de órgão doente.

Mas não foi sempre assim. Aliás, na história da humanidade e da Medicina, essa lógica compartimentada e tecnicista é bastante recente. Lembremos, pois, que o símbolo da Medicina (bem como de outras áreas da saúde) no Ocidente é um bastão de Esculápio envolvido por uma serpente. Segundo a mitologia grega, Esculápio nasceu de uma tragédia entre seus pais e foi entregue ao centauro Chíron, que o criou ensinando as artes da cura e da caça. Esculápio torna-se um grande médico e cirurgião, sendo reconhecido como deus da medicina no mundo greco-romano.

 

Assim, Esculápio nasce sob o signo da perda de sua mãe, e o da reparação e do abandono de seu pai. Ele, que deve sua vida à necessidade de seu pai de desfazer o mal infligido à sua mãe, torna-se, mais tarde, aquele que alivia o sofrimento de seus semelhantes. Arrancado dos braços da morte, Esculápio adquire, em seguida, o poder de realizar ele mesmo esta ação. (Volich, 1995)

 

Não obstante, é importante lembrar que Chíron, que criou o deus da medicina, era um curandeiro e mestre, ou seja, tinha em si o dom da cura, de preservar a vida, mas também o poder de compartilhar com o outro seus conhecimentos. Ele sofria, porém, de uma ferida eterna (já que ele era imortal), causada por uma flecha perdida atirada por Hércules, e incurável até por ele mesmo. "Assim, Chíron e Esculápio, o Mestre e o discípulo, o poderoso e o abandonado, o médico e o doente, [...] se encontram sob o signo da perda e da dor irreversíveis" (Volich, 1995).

É preciso lembrar desta história, que nos resgata os fundamentos do tratamento médico: o encontro entre feridos, que sofrem ou podem sofrer das mesmas dores, mas que estão em momentos diferentes - um que precisa de cuidado, e o outro que agora pode oferecê-lo. Para isso, é preciso que o médico, antes de se especializar em doenças, lembre-se do seu próprio estatuto de humano, enquanto ser também ferido, e que é capaz de escutar. E então, só a partir dessa escuta, é possível caminhar lado a lado com o paciente no caminho da cura.

 

Eis uma palavra boa em nossa língua: a palavra "cura". Se essa palavra pudesse falar, esperar-se-ia que ela contasse uma história. As palavras têm esse tipo de valor: têm raízes etimológicas, têm história. Como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade. (Winnicott, 2005 [1970])

 

Originalmente, "curar" significa ‘cuidado'. A partir do século XVIII, o termo passou a se relacionar com o tratamento médico, e, mais tarde, a "cura" se relacionou com desfechos bem-sucedidos, no sentido de a doença ser combatida e/ou o mal desaparecer (Winnicott, 2005 [1970]). Seguindo o raciocínio deste autor, atualmente, aquela fragmentação da profissão, já citada por Benedetto e Gallian, também se baseia na separação das duas compreensões do que é curar: o clínico geral cuida, e o especialista trata. Mas Winnicott nos alerta que um não pode se esquecer da função do outro. O generalista deve conhecer as doenças e seus tratamentos, para um correto encaminhamento do paciente; e o especialista não pode abandonar o cuidado como ato médico primordial. "Devido à vastidão do campo, é inevitável a especialização num sentido ou no outro. No entanto, como pensadores, não estamos dispensados de tentar uma abordagem holística" (Winnicott, 2005 [1970]).

A medicina se vê, então, entre dois caminhos. A profissão do cuidado, e a ciência da cura (ou melhor, do tratamento). O médico precisa ser alguém que escute o outro em sua integralidade, ciente de sua própria condição humana, mas que conheça os saberes científicos que pautam um tratamento exitoso.

 

Entre Filosofia, ciência e profissão

 

Ora, chegamos a dois caminhos, a profissão e a ciência, mas antes de esta trilha bifurcar, seguíamos por uma terceira estrada: a da Filosofia. Partimos de uma concepção ou de um ato filosófico, questionando-nos sobre o que é o ser humano, o que é cuidar, o que é curar. Enquanto Filosofia, não pretendemos encerrar tais questões, respondendo-as dentro do paradigma da verdade ou da certeza. Ao contrário, o ponto de partida filosófico é sempre o não saber, a constante dúvida - e essa caminhada só pode chegar a outras perguntas, mantendo essa inquietação fundamental que nos faz avançar.

A Medicina não é, porém, Filosofia. Filosofamos ao pensar em suas origens, em suas funções. Filosofamos ao compreender as relações humanas que estão implicadas no encontro médico-paciente. Mas um médico não é um filósofo, nem pretende e nem o deveria ser. Como, então, relembrar o corpo médico de seu estatuto humano? De sua função de cuidado? De seu papel de escuta, enquanto fundamento da existência humana e do próprio ato de cuidar?

O médico também não é, a priori, um cientista. A ciência, aquela "sólida sabedoria" que busca respostas de maneira esquematizada, colabora muito com a prática médica atual - mas não são a mesma coisa.

Se não é Filosofia, nem ciência, o que é, então, a Medicina?

 

É precisamente uma profissão, uma atividade prática. Como tal significa um ponto de vista diferente daquele da ciência. Ela se propõe curar a espécie humana ou manter sua saúde. Para esse fim lança mão de tudo quanto parecer adequado: entra na ciência e colhe de seus resultados tudo quanto considerar eficaz: mas abandona o resto. Exclui da ciência sobretudo o que lhe é mais característico; a fruição do problemático. Isto bastaria para diferenciar radicalmente a Medicina da ciência. Esta consiste em um "prurido" de expor problemas. Quanto mais for isso, mais puramente cumprirá sua missão. A Medicina, porém, está aí para apresentar soluções. Se forem científicas, melhor. Contudo, não é necessário que o sejam. Podem proceder de uma experiência milenária que a ciência ainda não explicou nem sequer consagrou. (Ortega y Gasset, 1999)

 

Parece-nos que a Medicina fica em uma encruzilhada: como qualquer atividade que trata essencialmente do humano, ela pede uma reflexão filosófica constante. Por sua característica de atender a necessidades em momentos de profunda dor e sofrimento, são exigidas dela respostas, ela deve "apresentar soluções" - e, para isso, lança mão de conhecimentos científicos ou de tudo mais que a experiência humana possa ofertar para cuidar do outro, tratar dele ou curá-lo. Mas ela não é nem um ato filosófico, nem a busca de um saber científico em si: ela é uma profissão. E, enquanto tal, deve estar cotidianamente amparada pela reflexão filosófica e pelo conhecimento científico.

Mas será que está? Têm os profissionais da Medicina recursos suficientes para lidar, de um lado, com as demandas profundamente humanas do sofrimento de seus pacientes, e, de outro, com o excesso de saberes técnicos e teóricos que as ciências positivistas atuais nos apresentam?

 

A Psicossomática Psicanalítica e a Medicina Narrativa como estratégias de humanização

 

Se, ao atender um paciente, o médico tira de sua frente todo o conhecimento técnico acerca das doenças e tratamentos, o que resta perante seus olhos é a mata selvagem. O perigoso e atraente mar profundo que é a existência humana em sofrimento. E, se o médico apenas mergulhar sem nenhum cilindro de oxigênio, ou entrar na selva com um chinelo de dedo, é bastante provável que ele próprio não consiga sair de lá. E aí estarão os dois, médico e paciente, chafurdados na lama existencial.

É preciso, então, algum plano, algum mapa, algum equipamento de proteção individual que permita ao profissional caminhar lado a lado com o paciente, escutando suas demandas, mas sabendo de possíveis rotas de fuga. Como já dissemos, mas não custa frisar, os medicamentos, exames, diagnósticos, bisturis, imagens ou laboratórios são importantes aliados nesta aventura de curar o outro. Mas não são suficientes. As tecnologias científicas costumam traçar atalhos eficientes rumo à extinção da doença, mas dependem de que, no mínimo, o paciente tope acompanhar o médico no caminho que ele indica. Portanto, é preciso que haja algum outro recurso, cuja provável única materialidade seja o próprio corpo do médico, que lhe permita acolher aquele que lhe pede ajuda e obter sua confiança.

Nessa aventura há uma cumplicidade, muitas vezes velada, entre ambos. O paciente precisa revelar sua intimidade (que pode variar do funcionamento do seu intestino à causa da morte de sua mãe), e o médico precisa conseguir suportar isso.

 

Infelizmente, o médico dificilmente possui instrumentos para saber o que fazer com tais revelações. Sendo assim, essas oportunidades para o verdadeiro contato humano são desperdiçadas por causa do medo e da ignorância, e a pessoa doente é deixada à deriva, tendo-lhe negado exatamente aquilo que é preciso no momento de uma doença séria aguda: a segurança de que se é reconhecido e reconhecível, ainda reconhecível como um eu apesar de uma mudança dramática no corpo. (Charon, 2015, grifos próprios)

 

Aqui precisamos olhar para um outro aspecto desse encontro médico: a condição do doente. Mesmo considerando os variáveis graus de intensidade ou gravidade das afecções somáticas, podemos dizer, filosoficamente, que estar doente nos aponta para uma restrição da existência. Algumas possibilidades dos modos de ser são suprimidas, e algumas necessidades (de cuidado, atenção, imobilização) são acionadas. Ainda assim, há um "eu" que continua, uma história que precisa continuar sendo contada.

Para a Psicanálise, os sintomas corporais podem ser compreendidos à luz de diferentes conceitos, como a clássica conversão histérica ou a hipocondria. Aqui, vamos nos ater ao estar ou ficar doente como possibilidade de qualquer ser humano, e como a Psicossomática Psicanalítica compreende o sujeito doente e pode contribuir para seu tratamento.

Em primeiro lugar, é importante lembrar que

 

O homem é psicossomático por definição. Chamar de "psicossomático" os pacientes somáticos e as doenças somáticas só pode, nestas condições, constituir um motivo de problema ou de desvio. O qualificativo psicossomático somente assume um valor quando se aplica a noções gerais, para precisar o setor considerado das ciências humanas: a ciência psicossomática, a medicina psicossomática, por exemplo. [...] O adjetivo psicossomático, aplicado às doenças e aos pacientes, parece-nos, assim, redundante [...]. Alguns especialistas insistem em dizer doença ou paciente "psicossomático". Isso seria inexpressivo, se não fosse significativo de sua hesitação entre o clássico dualismo psique-soma e a aventura abertamente monista que a psicossomática representa em relação ao dualismo anterior. (Marty, 1993)

 

É preciso sempre um esforço para encontrar palavras que contemplem a unicidade do ser humano, e que não perpetuem os dualismos entre "mente" e "corpo". Portanto, quando tratamos de pessoas doentes, não temos "pacientes psicossomáticos", mas, sim, sujeitos que sentem, sofrem, se expressam e contam suas histórias, porém o enredo somático é aquele que se sobressai.

Esta compreensão é bastante cara à Psicossomática Psicanalítica, principalmente na vertente da chamada Escola de Paris - da qual Pierre Marty, supracitado, é o principal expoente. O autor apontou a existência de um funcionamento psíquico empobrecido nas pessoas doentes (principalmente naquelas com doenças crônicas). A observação clínica de tais pacientes o fez cunhar o termo Pensamento Operatório (Marty; M'Uzan, 1964), que indica a falta de simbolização, de fantasias, sonhos, e tudo aquilo que fez Freud observar um funcionamento vivo inconsciente.

 

Este conjunto de manifestações, caracterizadas essencialmente pelo excesso de importância ao fatual e ao presente, por comportamentos automáticos e adaptativos, por uma ruptura com o Inconsciente e com a sexualidade, por uma alienação da própria história, pela negligência do passado e incapacidade de projeção para o futuro, foi descrito por Pierre Marty sob a denominação de Pensamento Operatório. (Volich, 1998)

 

Ora, com a manifestação psíquica tão restrita, o relato de um paciente ao seu médico torna-se um dos poucos momentos em que aquele sujeito pode recontar a sua história, tratando-se, talvez, de um dos poucos temas que o fazem "trabalhar" as palavras: sua doença. Aqui frisamos a importância da linguagem enquanto estruturante do sujeito e lembramos que a mesma só pode acontecer no encontro com o outro. Assim, o encontro médico-paciente não pode ser desperdiçado, uma vez que ele não só sustenta o tratamento médico em si, como também possibilita àquele sujeito uma ampliação de seus recursos de expressão.

O médico precisa, então, estar atento ao modo como aquela pessoa está vivendo e narrando sua história, de uma maneira global. Para isso, compreendemos que o exercício literário é um importante instrumento de mediação entre aquele que sofre - e tenta, com certo custo, costurar algumas palavras para formar uma trama compreensível e passível de ser tratada - e aquele que pretende curar, equilibrando os pratos dos saberes científicos, das próprias dores e da disponibilidade de escuta daquele outro que se encontra em sua frente.

 

Quando, como profissionais de saúde, utilizamos as histórias dos pacientes para aprimorar nossa atuação, para melhor interagir com os pacientes e para nos beneficiarmos do potencial terapêutico e didático das histórias, ou seja, quando as utilizamos de forma metodológica, é natural que as denominemos narrativas. (Benedetto, 2010)

 

Assim, a chamada Medicina Narrativa se constitui como recurso de humanização para o atendimento clínico, trazendo à luz a característica fundamental do ser humano enquanto linguagem, enquanto história que precisa ser (e só é) compartilhada.

Mais do que uma interessante reflexão filosófica, tal concepção nos traz uma necessidade profissional, de atentar à escuta e ao acolhimento como bases de um tratamento médico bem-sucedido.

 

Ouvir as histórias dos pacientes com atenção, mesmo que aparentemente nada tenham a ver com suas histórias clínicas, promove um efeito terapêutico ou curativo, o que é facilmente constatado na prática clínica diária.

[...]

Tal atitude permite ao paciente organizar o caos que existe em sua mente, o qual foi provocado pela enfermidade ou situação difícil que vivencia. (Benedetto, 2010)

 

Ou seja, o uso da Medicina Baseada em Narrativas promove uma melhora no quadro clínico do paciente, colaborando com sua organização psíquica e aumentando a eficiência do tratamento, uma vez que o profissional está mais aberto a identificar as reais necessidades daquele caso, oferecendo as terapias mais adequadas a cada demanda. Há, portanto, uma melhora global da relação médico-paciente, aumentando também a adesão ao tratamento (Benedetto; Gallian, 2018), uma vez que aquele sujeito que sofre percebe que está sendo escutado, compreendido, e que, assim, pode confiar no que o médico lhe diz.

Além disso, o próprio profissional tem uma visão ampliada do ser humano (o que não é possível com a aplicação exclusiva das tecnologias científicas) e pode lidar melhor com temas tão presentes e caros na prática de saúde, como a dor, o sofrimento e a morte (Benedetto, 2010). Tendo sua própria humanidade acionada ou refletida (em seu pensamento ou refletida naquele outro/espelho que se encontra em sua frente), o médico exerce a empatia, reconhecida como uma das características principais de um bom profissional.

Entretanto, articular a compreensão psicanalítica com uma metodologia de trabalho baseada em narrativas, ambas fundamentadas em uma visão monista e holística do ser humano, não é algo fácil no cotidiano dos serviços de saúde. É preciso certo empenho e criação de espaços em que os recursos fundamentalmente humanos de linguagem e de cura sejam exercitados.

Muitas vezes, nas instituições hospitalares, por exemplo,

 

O que observamos é que os aspectos psicodinâmicos do paciente são considerados, mais frequentemente, como uma espécie de acompanhante indesejável da doença que pode exigir alguma atenção. Psicólogos ou psiquiatras costumam ser solicitados para, através de uma interconsulta, ou de um tratamento paralelo, cuidar de problemas disciplinares do paciente. Ou, então, determinadas doenças são consideradas psicossomáticas se não se detecta nenhuma etiologia orgânica. Constituem-se, assim, numa espécie de caso especial, exceções que mantêm inalterado o modelo hegemônico das doenças e terapêuticas puramente físicas. (Cazeto, 2005)

 

Assim, compreender o ser humano em sua totalidade requer também um trabalho integral do corpo médico - enquanto equipe de trabalho e indivíduo profissional que se coloca diante do sofrimento do outro. A Psicossomática Psicanalítica, assim como a Medicina Narrativa, não pretende ser mais um corpo teórico e científico que introduz novos conceitos a serem absorvidos pelas equipes de saúde. Não há a intenção de ser mais um compartimento, mais uma especialidade.

Ora, nossas ambições com a psicossomática são maiores. Não queremos com ela constituir uma categoria especial da nosologia, mas reintroduzir os elementos que a concepção hegemônica de doença e nossas práticas hospitalares excluíram. No caso do hospital, a pretensão seria fazer o caminho inverso da dissociação doente/doença. Não esperamos que seja a prática específica de psicólogos, psiquiatras ou médicos especializados, mas que influencie as diversas especialidades médicas, as práticas de enfermagem etc. E, além disso, que contribua para mudanças que tornem o trabalho nos hospitais uma atividade mais saudável para os profissionais da equipe de atendimento. (Cazeto, 2005)

 

Conclusão

 

Se viver é encontrar-se na mata selvagem, precisamos de alguns instrumentos para sobrevivência. Em vida, nós nos distraímos com todas as nossas produções culturais e organizações sociais. A gente trabalha, come, conhece lugares diferentes, constrói pontes, compra coisas, escreve artigos, namora. Como diz Ortega y Gasset, a cultura se apresenta como "plano da vida, o guia dos caminhos pela selva da existência" (1999). Aliás, continua o autor, "esta metáfora das ideias como vias, caminhos (= méthodos), é tão velha quanto a própria cultura" (Ortega y Gasset, 1999). Assim, a vida vai acontecendo, e a angústia de não termos a menor ideia do que isso quer dizer (viver) é um pouco aplacada. Nossa história vai sendo escrita e lida ao mesmo tempo, amarrando nossa trama biográfica.

Quando adoecemos, porém, a angústia da morte, da finitude, bate à nossa porta. Perde-se (muito ou pouco) o sentido. Nossa história é interrompida, ou nos faltam palavras. Falta-nos língua para lidar com algum espinho ou vendaval que pode acontecer na selva. E então nosso corpo dói, arranha-se ou é puxado para algum lugar mais obscuro.

É fundamental para o ser humano a ajuda de outro ser humano. Sem o outro não sobrevivemos. E atualmente, em nossa cultura, quem procuramos quando ficamos doentes é o médico. É ele que recebe a pessoa em sofrimento somático e deve fazer algo com isso. Se "apenas" os conhecimentos e tecnologias científicos não são suficientes para a cura (o cuidado e o tratamento), o profissional deve se lembrar que sua função se inicia no encontro humano - entre dois entes feridos. E é assim, como seres faltantes e biográficos, que médico e paciente devem compartilhar de suas experiências (de um lado, aquela de adoecer e de se narrar, e, de outro, aquela de acolher, saber e tratar).

Assim, o conhecimento científico se une à presença genuinamente humana, e o médico, tentando exercer sua profissão, vê-se no ponto de encontro entre a compreensão da existência e a ciência. São necessárias algumas metodologias, então, para que sua função de cuidado seja alcançada, ou para que seja iluminado este caminho em meio à mata fechada. "Daí o fato de que caminhem juntos os vocábulos método e iluminação, ilustração." (Ortega y Gasset, 1999).

Para isso, a compreensão narrativa do ser humano aparece como uma opção humanizadora do trabalho em saúde, colocando-se em um outro lugar, diferente de mais um saber científico que distancia médico de paciente. Burgarelli, ao discutir a função da literatura, resgata Roland Barthes, que, em consonância com Lacan,

 

desloca a função da literatura de seus rumos bem definidos para nos apresentá-la como rumor. O que a ciência tem que a literatura não tem? O estatuto, ele responde. E a literatura precisa correr atrás desse estatuto, como pretendeu o estruturalismo? Não! Seu papel, segundo ele, é "representar ativamente à instituição científica aquilo que ela recusa, a saber, a soberania da linguagem" (Barthes, 1988, p. 29, grifo do autor). O que está em questão, para Barthes, é uma terceira margem, a do prazer, o Eros da linguagem, de que o discurso científico está longe. Prazer (jouissance), para Barthes (1996), é isto: sustentar a imprevisão do desfrute, a intermitência entre aparecimento-desaparecimento; jamais se explicar, pois o lugar da dúvida não deve ser tamponado por uma explicação "iluminada". (Burgarelli, 2005)

 

Assim, o(a) profissional de saúde deve caminhar com um pé em cada trilha: aquela que sabe, que conhece, que prevê e tenta controlar; e aquela que nada sabe, que busca conhecer, que pretende genuinamente escutar o outro que se coloca à sua frente. Como dizem por aí, os protocolos de atendimento devem ser trilhas, e não trilhos. Não devem tamponar o eterno questionamento e o profundo não saber que carregamos enquanto seres humanos.

Para isso, a literatura nos aparece enquanto recurso que subverte, que escancara as faltas e, ao mesmo tempo, organiza o sujeito enquanto história. Ela transforma o não dito, o que foi calado, o que foi doído, fraturado, em algo dito, comunicável e compartilhado. Como já dissemos, porém, para que um texto cumpra sua função, é necessário um leitor. Só há música se houver ouvidos. E o corpo médico deve ser aquele que escuta.

Assim como, individualmente, os corpos podem adoecer, a equipe, a categoria ou a simbologia de uma profissão também podem ficar doentes e ter suas capacidades restringidas. Está o corpo médico saudável e com recursos suficientes para acolher e cuidar de outros corpos? Ou está ele cada vez mais funcionando de um modo operatório, que não simboliza, não sonha e não entra em contato com a pulsão inconsciente da vida?

 

A perspectiva psicanalítica configura assim a psicossomática como um campo operador para refletir sobre alguns avatares da existência do Homem: suas origens, seu desenvolvimento, seus males, suas produções individuais, sociais e culturais, frutos de seu desenvolvimento através do embate permanente entre as instâncias pulsionais de vida e de morte. (Volich, 2007)

 

E é assim que pretendemos concluir este trabalho, compreendendo a Psicossomática Psicanalítica e a Medicina Narrativa como campos operadores, ou seja, como estratégias de trabalho que valorizem os conhecimentos científicos sem que estes tamponem o encontro humano enquanto compartilhar de biografias.  Mais do que abordagens técnicas e terapêuticas, ambas buscam promover

outros modos de relação pessoais e profissionais, questionando desta forma as implicações de um modelo social determinado pelo ritmo frenético e excitante da produção, do consumo e das quinquilharias materiais. Ela pode nos permitir sonhar com uma sociedade que reconheça a função do conhecimento, da cultura, da arte como verdadeiras criações profiláticas que, aquém do prazer, são sobretudo vitais para o Homem, como ser e como espécie. (Volich, 2007)


 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Livia Chaud Albano
Hospital e Maternidade Brasil

Psicóloga pela PUC-SP. Especializanda do curso Psicossomática Psicanalítica – Corpo e Clínica Contemporânea pelo Instituto Sedes Sapientiae e mestranda em Ensino em Ciências da Saúde pela Unifesp. Psicóloga do colaborador no Hospital e Maternidade Brasil. Psicóloga clínica em consultório particular.

Notas
[1] Sobre este tema, sugiro também a leitura de A espécie fabuladora: um breve estudo sobre a humanidade, ensaio de Nancy Huston, publicado pela Editora L&PM, em 2008.    
Referências bibliográficas

BENEDETTO, M. A C. Entre dois continentes: literatura e narrativas humanizando médicos e pacientes. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 34, n. 3, p. 311-319, 2010.

BENEDETTO, M. A. C. de; GALLIAN, D. M. C. Narrativas de estudantes de Medicina e Enfermagem: currículo oculto e desumanização em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 22, n. 67, p. 1197-1207, dez. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br Acesso em: 3 jun. 2021.

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