ARTIGOS

Adaptação da família ao sujeito idoso – Por uma ética do cuidado


Family Adaptation to the elderly subject – For an ethics of care
Glória Heloise Perez

RESUMO
A longevidade trouxe uma nova experiência subjetiva da velhice e das relações familiares. Este artigo analisa, com as contribuições de Ferenczi e Winnicott, as peculiaridades da relação da família contemporânea com um sujeito da nova velhice: a pessoa idosa longeva dependente. A pessoa idosa longeva, com perda da funcionalidade e da autonomia, tem uma demanda de ampla gama de cuidados, tarefa que, no Brasil, recairá sobre a família, por esta ser considerada, especialmente na cultura latina, o lugar de proteção do sujeito. A família da atualidade, que está tendo o encargo de cuidar da pessoa idosa dependente, passou por transformações como resultado de mudanças sociais profundas. Com o predomínio do individualismo, dos arranjos familiares mais mutantes e menos duradouros e da emancipação feminina, a tarefa de cuidar não é mais assumida, naturalmente, pelas mulheres. Sendo assim, as condições objetivas e subjetivas do grupo familiar necessárias para a inversão da relação de cuidados, em que filhos têm seus pais em situação de dependência e necessidade de atenção da mesma ordem que outrora tiveram deles, juntam-se ao rol dos objetos de tensão e conflitos da família. A disponibilidade para cuidar estará atravessada pelo complexo de relações intergeracionais e intrageracionais, bem como pelo entrelaçamento complexo da história de cuidados de cada um no seu processo de desenvolvimento emocional e da constituição do si mesmo, e também pelas angústias do complexo de Édipo e do complexo fraterno. Ferenczi e Winnicott enfatizam a importância do ambiente no processo de desenvolvimento do sentido do si mesmo, da força vital e da vontade de viver do ser humano, bem como de oferecer sustentação e proteção contra as experiências de desintegração e descontinuidade de ser, como as que podem ser vividas na situação de dependência na velhice. Dessa maneira, compreendemos que se pode extrapolar a importância da adaptação da família às necessidades do sujeito idoso regredido para a condição de dependência, com hospitalidade e empatia, como o paradigma da ética do cuidado.

Palavras-chave: Idoso, Família, Longevidade, Demência, Ética do cuidado.

ABSTRACT
Longevity brought a new subjective experience of old age and family relationships. This article analyzes, with the contributions of Ferenczi and Winnicott, the peculiarities of the contemporary family's relationship with a subject of new old age, the dependent elderly person. Long-lived elderly people with loss of functionality and autonomy demand a wide range of care, a task that, in Brazil, falls to the family, as this is considered, specially in latin culture, the place for the protection of the subject. However, today’s family, which is responsible for caring for dependent elderly, has undergone transformations as a result of profound social changes. With the predominance of individualism, more changing and less lasting family arrangements and female emancipation, the task of caring is no longer naturally assumed by women. Therefore, the objective and subjective conditions of the family group, necessary for the inversion of the care relationship, where children have their parents in a situation of dependence and need for attention of the same order that they once had from them, join the list of objects of family tension and conflicts. Availability to care will be crossed by the complex of intergenerational and intragenerational relationships, as well as by the complex intertwining of each person's history of care in their process of emotional development and self-constitution, and also the anxieties of the Oedipus complex and the fraternal complex. Ferenczi and Winnicott emphasize the importance of the environment in the process of developing the human being's sense of self, vital force and will to live, as well as offering support and protection against experiences of disintegration and discontinuity of being, such as those that can be experienced in the situation of dependence in old age. In this way, we understand that we can extrapolate the importance of adapting the family to the needs of the elderly subject who has regressed to the condition of dependence, with hospitality and empathy, as the paradigm of the ethics of their care.

Keywords: Elderly, Family, Longevity, Dementia, Ethics of care.


Vicissitudes da velhice na atualidade

 

O avanço da medicina contemporânea promoveu o aumento da longevidade, criando uma nova velhice. Como analisa Birman (2015), a velhice deixou de ser sinônimo de finitude, de ser reduzida à espera passiva da morte, para ser considerada uma nova etapa da vida, com várias possibilidades de ser e existir. E, para transformar a pessoa idosa em um consumidor, conforme a ordem e a lógica da sociedade de consumo, medicalizada e tecnológica, foi necessário transformá-la, também, em um sujeito desejante.

Assim, temos uma nova experiência existencial de velhice (Birman, 2015), embora ela seja muito heterogênea, pois é dependente do gênero, da raça, das condições socioculturais, econômicas e políticas e também dos recursos psíquicos do sujeito idoso. Temos um bom exemplo dessa realidade no filme Meu pai (2020), que apresenta a experiência do personagem Anthony, de 81 anos, portador de um quadro de demência. O curioso é que o personagem foi interpretado, magnificamente, por Anthony Hopkins, também de 81 anos, que ganhou um Oscar de melhor ator, justamente pela magnificência com que executou esse trabalho. Esse exemplo é emblemático e representa a pluralidade da experiência existencial da velhice na contemporaneidade. Aos 81 anos, pode-se estar com saúde, trabalhando e vivendo plenamente, integrado socialmente, ou, pelo contrário, em situação de dependência absoluta, como é o caso do personagem que ele interpretou. 

No cenário dessa nova velhice plural, não necessariamente, como era habitual, o sujeito idoso mantém-se recolhido e dedicado apenas à vida familiar, mas, pelo contrário, expande-se para muito além dos horizontes dela, movido também pelo imperativo social da cultura contemporânea, de aproveitar a vida intensamente (Birman, 2015), por vezes, muito diferente daquilo que era esperado e desejado pelos filhos. Na cultura da sociedade líquida e da destradicionalização (Bauman, 2001), em que as mudanças são contínuas, é certo que a pessoa idosa não está exatamente no lugar daquele que sabe mais, de quem transmite as tradições, mas também no lugar daquele que precisa aprender com os jovens.

Se, por um lado, algumas das transformações corporais inexoráveis da velhice ficam minimizadas pelos recursos da medicina contemporânea, a vida mais longeva, também viabilizada por ela, expõe o sujeito à possibilidade de uma existência com maior fragilidade, limitações, até perda da autonomia e da capacidade funcional e, consequentemente, com dependência. Em determinadas doenças crônicas degenerativas e demências, pode-se regredir a uma condição de dependência absoluta. Instala-se uma ampla necessidade de cuidados. Dessa maneira, retorna-se a uma relação com o ambiente nos mesmos moldes daquela do início da vida (Winnicott, 2000 [1945]). Esta possibilidade de realidade da longevidade traz uma nova experiência subjetiva, uma nova experiência na relação com o outro e, portanto, com a família. 

O aumento da longevidade, mais prevalente nos grupos familiares de condições econômicas mais favoráveis, muda a realidade das famílias, que passam a ter muitas pessoas idosas, frequentemente, em número maior do que o de crianças. Pais e filhos na terceira idade também se tornaram uma realidade muito comum. Nos Estados Unidos, apelidou-se esta geração, sobre a qual recai a responsabilidade de cuidar dos pais longevos, conciliando-a com a assistência aos filhos, de "geração sanduíche". No Brasil, a denominação usada é "geração panqueca", pois a idade média da maternidade é mais baixa, e a família já tem netos quando os pais começam a ter necessidade de cuidados (Macedo, 2023). Nas famílias de baixa renda, geralmente, encontramos pessoas idosas menos longevas e com saúde mais fragilizada, fruto da dificuldade crônica de acesso a boas condições de vida e à assistência médica e de risco de morte precoce por violência.

Esta nova realidade da família, ou seja, de familiar idoso com perda da funcionalidade e da autonomia, gera também uma nova demanda, que é de uma ampla gama de cuidados, que tendem a aumentar gradativamente. Esses cuidados podem ir desde o auxílio na administração da vida em geral até as necessidades mais básicas, como higiene pessoal e alimentação, incluindo também lidar com crises de irritabilidade, agressividade e agitação, além de dificuldades de comunicação, comuns nos quadros demenciais.

É verdade que nem sempre a pessoa idosa dependente aceita ser ou se sente cuidada, apesar de todos os esforços e de todas as ações nesse sentido. Podemos considerar este comportamento como impiedoso, devido à regressão à dependência, da mesma maneira que o bebê antes da fase de concernimento, conforme a teoria winnicottiana (Winnicott, 2000 [1945]). Sem dúvida, o cenário é de grande mobilização psíquica, por conta do que a delicadeza da experiência da situação de dependência gera, tanto na pessoa que necessita de cuidados como naquela que está cuidando. A situação de cuidado exige do familiar grande dedicação, disponibilidade interna e de tempo e tem alto custo emocional, além do financeiro, propriamente dito. 

A tarefa de cuidar recai sobre a família, pois, no Brasil, legalmente, pelo Estatuto da Pessoa Idosa, os filhos são responsáveis pelos pais idosos. E, na verdade, isto ocorre porque, na cultura ocidental contemporânea, a família é o lugar privilegiado de constituição do sujeito e da sua inserção no mundo cultural e social. Ela tem vocação de ser referência, proporcionar pertencimento, prover afeto e proteger o sujeito das ameaças do mundo externo e do mundo interno (Pincus; Dare, 1987). Por conta desta vocação, está convocada para a tarefa de cuidar do sujeito, principalmente em situações de vulnerabilidade e dependência. É verdade que nem sempre e nem todas as famílias são bem-sucedidas nesta missão, pois elas não são entidades que mantêm uma relação somente de amor com seus membros, visão idealizada, que habita o imaginário social. Por vezes, a família não conseguirá prestar um cuidado adequado às necessidades da pessoa idosa, uma vez que membros dela podem estar, também, em situação de vulnerabilidade, não ter disponibilidade interna, nem mesmo recursos psíquicos para assumir esta posição. Essas condições favorecem a possibilidade de abusos, maus-tratos, negligência e abandono, ao invés de cuidado.

Como analisam Campos e Diniz Neto (2019), apesar de políticas públicas considerarem os cuidados à pessoa idosa como corresponsabilidade da família e do Estado, e de o Ministério da Saúde (Brasil, s. d.) ter um programa de Estratégias de Saúde da Família, verifica-se a predominância do cumprimento dessas responsabilidades no âmbito privado (Kuchemann, 2012). Isto se deve a uma omissão do Estado na sua função de proteção social. Pesa também o fato de haver, entre os latinos, uma cultura de transferência de apoio intergeracional, ao longo de todo ciclo familiar (Caldas, 2003). Dessa maneira, práticas como a residência em instituições de longa permanência ainda não são muito comuns e tendem a ser vistas, culturalmente, de modo negativo, geralmente como abandono, negligência, rejeição, tanto pela pessoa idosa como por seus familiares. Não devemos deixar de considerar que a institucionalização ou contratação de um cuidador remunerado pode aliviar o volume do trabalho de cuidado e diminuir a carga afetiva deste, uma vez que fica com encargos como levar ao banheiro, dar banho, trocar fraldas, que, potencialmente, ativam a sexualidade e podem trazer e atualizar muitos conflitos infantis. No entanto, isso não retira da família o peso emocional do encargo de estar responsável pelo atendimento das necessidades de um familiar que se tornou dependente.  

 

Vicissitudes da família na atualidade

 

A família, por seu lado, além dessa nova realidade de pessoas idosas longevas desejantes e/ou dependentes, passou por outras transformações como resultado de mudanças sociais profundas, ligadas ao processo de valorização do indivíduo e à emancipação feminina. Como refere Roudinesco (Roudinesco, 2003), a família contemporânea está em desordem. 

Com o predomínio do individualismo, característica marcante da cultura contemporânea, em que a vida está sendo regida, acima de tudo, por leis de mercado, que disseminam imperativos de bem-estar, prazer e satisfação imediata de todos os desejos (Kehl, 2013), pressupõe-se que cada um invente o seu projeto de vida, que não é mais, necessariamente, o casamento heterossexual, ter filhos e trabalhar para juntar um patrimônio.

Como analisa Kehl (2013), o amor e a realização sexual de cada um serão os fundamentos legítimos das uniões conjugais e dos arranjos familiares, que passam a ser muito variados. Dessa maneira, a família deixa de ser uma sólida instituição para se transformar em um agrupamento mais circunstancial e mutante, uma vez que fica regido pela lei dos afetos e dos impulsos sexuais, também variáveis. As separações e as novas relações conjugais ficam naturalizadas quando não há mais amor ou realização sexual. Consequentemente, formam-se as famílias recompostas, que incluem os filhos dos cônjuges atuais e os filhos das uniões conjugais anteriores. Dessa maneira, temos a supremacia do conjugal sobre o parental, determinando um sentimento de certa orfandade nos filhos (Gomes, 2016, p. 61).  

Por outro lado, nesses novos arranjos familiares,

 

o pátrio poder vem sendo progressivamente distribuído entre vários adultos, e como consequência observamos a tendência do surgimento de novas formas de aliança entre os irmãos. Com frequência, nas famílias que se desfazem e refazem várias vezes ao longo da vida das crianças, os irmãos constituem referências sólidas para as identificações horizontais; alianças de afeto e cumplicidade entre os irmãos, algumas vezes, são mais estáveis do que os laços com os adultos. (Kehl, 2013)

 

Esta importante mudança na configuração familiar veio no esteio da emancipação feminina. O domínio do discurso da ciência e a presença massiva da tecnologia, também característicos da cultura contemporânea, que promoveram a longevidade, trouxeram os métodos anticoncepcionais e, consequentemente, a liberação sexual, desempenharam um papel importante na emancipação feminina. Mais recentemente, os avanços da medicina trouxeram as cirurgias para mudança de gênero e a reprodução assistida, possibilitando a filiação biológica para casais homoafetivos. Dessa maneira, ampliaram-se as condições para o nascimento da família homoparental, que também pode se constituir com filhos biológicos, e não somente por meio de adoção, e da família monoparental, quando uma mulher opta por tornar-se mãe e constituir uma família sem a presença de um pai, e vice-versa. A família monoparental por produção independente passou a ser uma possibilidade para indivíduos com alto poder aquisitivo, mas é importante ressaltar que a família monoparental chefiada por mulheres é uma realidade bastante frequente na população de baixa renda no Brasil, geralmente com filhos de parceiros sexuais diferentes, que não assumiram a paternidade ou abandonaram a relação conjugal. Nessas famílias monoparentais, com ausência da figura paterna, muitas vezes a avó materna, com sua aposentadoria, ocupa o lugar de provedora da família e cuidadora dos netos. Uma outra realidade a ser considerada é que separações, divórcios, recasamentos e problemas financeiros, muitas vezes advindos da situação de precarização das condições de trabalho, eventualmente, colocam filhos adultos e netos em situação de dependência dos pais idosos. Portanto, temos múltiplas velhices, e também múltiplas famílias, na sociedade contemporânea.

Outra questão importante é que a ida da mulher para o mercado de trabalho e a ampliação do seu papel social para além da maternidade e do cuidado dos filhos  alteraram amplamente a relação entre os gêneros e entre as gerações. 

Na família contemporânea, o poder patriarcal cede lugar para ser distribuído de forma mais igualitária entre os cônjuges e também, aos poucos, entre pais e filhos (Kehl, 2013). Todos estão bastante ocupados, envolvidos com inúmeras atividades e comprometidos com o imperativo de viver a vida intensamente. Além disso, o cuidado das crianças e, eventualmente, de outros que ficam em situação de dependência (como os doentes e as pessoas idosas) não é mais assumido naturalmente pelas mulheres como sua tarefa, uma vez que elas também estão bastante ocupadas com sua vida fora do âmbito familiar.

Embora se tenha caminhado para relações mais flexíveis e dialogadas entre os cônjuges (Gomes, 2016) e se tenha avançado na flexibilização de papéis em relação ao cuidado das crianças, a realidade da necessidade de cuidados mais intensivos e prolongados também para a pessoa idosa chega para a família em um momento em que a questão do cuidado dos filhos ainda é seu objeto de tensão e conflito.

Podemos dizer que, diante do estilo de vida atual, com predomínio do individualismo, e dos arranjos familiares mais mutantes e menos duradouros, as condições objetivas e subjetivas do grupo familiar, necessárias para cuidar desses novos idosos com múltiplas dependências, juntam-se ao rol dos objetos de tensão e conflito nas famílias. 

 

Velhice e família: uma relação tão delicada

 

As transformações da velhice trazem novas experiências subjetivas e nas relações familiares. A pessoa idosa longeva e em estado de regressão à dependência impõe a inversão da relação de cuidados, em que os filhos têm seus pais em situação de dependência e necessidade de atenção da mesma ordem que outrora tiveram deles. Filhos podem chegar à velhice sem ter a experiência de perda das figuras parentais e, assim, também idosos, ter de cuidar de seus pais.

Dessa maneira, na atualidade, a pessoa idosa dependente coloca para a família o mesmo tipo de demanda de cuidados que as crianças. No entanto, a criança, o filho, na cultura contemporânea de predomínio do narcisismo e do individualismo (Millan, 2002), é objeto de alto investimento narcísico dos pais, como depositários de sua continuidade. Além disso, a tendência é de a criança precisar, gradativamente, de menos cuidados. As necessidades de dependência do familiar idoso vão no sentido contrário e tendem a aumentar. Enquanto a criança é uma aposta na vida, no futuro, na sua própria imortalidade, o cuidado do familiar idoso dependente remete ao contato com a morte, a finitude, a fragilidade do ser humano, a realidade do envelhecimento, e ainda ocorre no contexto de uma cultura que valoriza somente a juventude.

 

Velhice, família e a (in)sustentável fragilidade da vida

 

O adoecimento e a demência na velhice espelham uma dura realidade psíquica, tanto para o velho como para os seus familiares: fragilidade, dependência, finitude, doença, dor, sofrimento, morte, desamparo. A fragilidade da vida fica personificada no velho.

Apesar dessa nova condição subjetiva, não devemos compreender a demência como uma ruptura biográfica. No entanto, é inegável que seja difícil para o familiar da pessoa idosa reconhecer o sujeito que ainda está lá!

Para compreender essa nova subjetividade, cabe recordar Winnicott (1997 [1958]) e sua teoria sobre o amadurecimento, que preconiza o sujeito estar em processo de desenvolvimento do sentido de si mesmo, ou seja, da constituição do self, que se faz sempre na relação com o ambiente, ao longo de toda a vida, "até o momento da morte, em que ocorre a última integração da história de um indivíduo, último ponto de uma história, mas ainda ponto desta história" (Fulgencio, 2016, p. 28).

As condições de transformação corporal e, muitas vezes, de dependência peculiares da experiência da velhice implicam na atualização da história de cuidados e da constituição do si mesmo desse sujeito, entrando em jogo como se constituíram as tarefas fundamentais do desenvolvimento emocional: a integração, a personalização e a realização. Dessa maneira, a partir do que descreve Winnicott em suas teorias do desenvolvimento emocional primitivo (Winnicott, 2000 [1945]) e da regressão (Winnicott, 2000 [1954]), podemos pensar que, no processo de envelhecimento, teremos a atualização de toda a história de cuidados do sujeito: a presença devotada da mãe, o jogo de satisfação/insatisfação sincrônico de suas necessidades e o jogo de ilusão/desilusão.

 

Subjacente ao desconforto crônico do corpo pode estar a ameaça de despersonalização e de perda dos limites do corpo e de angústias impensáveis, quase físicas, que fazem parte do reverso do processo que é chamado integração. (Winnicott, 1994 [1969], p. 91)

 

Assim, podemos considerar que se sentir real e continuar a ser, habitar o próprio corpo e viver uma vida que vale a pena, conceito de saúde para Winnicott (Winnicott, 1975 [1967]), é no que consiste a tarefa de continuar a constituir o sentido do si mesmo também na experiência da velhice (Perez, 2023).

Podemos compreender o adoecimento e o processo de demenciação na idade avançada, considerando-o, segundo a teoria winnicottiana, como um fenômeno psicossomático (Winnicott, 1994 [1969]), que, na compreensão deste autor, pode ser uma tentativa de integração psicossomática possibilitada, justamente, pela regressão a uma condição de dependência e pelos cuidados recebidos do ambiente, atendendo a essa necessidade. Assim, é nessa concepção que estamos considerando a importância de a família adaptar-se às necessidades da pessoa idosa, como possibilidade para o processo de integração psicossomática na condição de senilidade.

Cabe lembrar que, no processo do desenvolvimento do sentido de si mesmo, ao longo de toda a vida, embora estejamos sempre na relação com o ambiente, existe uma diferença entre uma pessoa idosa e um bebê, uma vez que este está no começo do seu desenvolvimento, enquanto aquela tem uma história de desenvolvimento e de constituição do self.

É curioso observarmos que o amadurecimento psíquico parte de uma situação de dependência absoluta rumo à independência relativa, sendo marcado por experiências como o desenvolvimento do andar, da fala, o desmame, a passagem para a alimentação sólida, o controle dos esfíncteres e a aprendizagem do asseio. A senilidade rumo à finitude, principalmente em determinados quadros demenciais, é marcada por um movimento regressivo no sentido da dependência absoluta, com a redução da capacidade motora, de capacidades cognitivas, perda de memória, perda do controle dos esfíncteres, mudanças no padrão de sono e de alimentação, perda da expressão verbal, e a pessoa vai se tornando similar a um bebê!

A pessoa idosa, bem como o indivíduo em qualquer idade, regredindo para a condição de dependência absoluta, tem, da mesma maneira que o bebê, a necessidade de um ambiente sustentador, que ofereça proteção contra as experiências de intrusão ou de desintegração, que instauram uma descontinuidade do ser.

Em seu ensaio de 1928, Ferenczi (1992) argumenta sobre "a adaptação da família à criança" como condição para que ela tenha vontade de viver e proceder o seu desenvolvimento emocional. Posteriormente, Winnicott, no mesmo sentido, afirma que "isso que chamamos de bebê não existe" (Winnicott, 2000 [1952], p. 165), referindo-se a não ser possível falar ou pensar em um bebê sem, junto com ele, considerar alguém que cuide dele. Dessa maneira, compreendemos que podemos extrapolar dizendo que "não existe a pessoa idosa em estado de dependência, sem sua família".

No texto "A criança mal acolhida e a pulsão de morte" (1992 [1929]), Ferenczi analisa as peculiaridades da experiência do ser humano quando ele ainda está muito próximo do estado de "não ser", e, consequentemente, a força vital ainda não é muito potente, como é o caso do bebê e, na nossa compreensão, como pode ser, também, a condição do sujeito idoso, em estágio avançado de demência. Neste texto, Ferenczi (1992 [1929]) salienta que

 

o acolhimento pela família da criança que ainda está próxima do estado de "não ser" vai introduzir impulsos positivos de vida e razões para continuar existindo. Vai designar a quantidade de defesas que ela vai estabelecer contra a pulsão de morte e desenvolver sua força vital, sua vontade de viver. (Ferenczi, 1992 [1929], p. 51)

 

o que nos parece se aplicar à realidade do sujeito idoso em estado de dependência.  

Dessa maneira, os familiares se veem diante de bem complicada demanda, e sua disponibilidade para cuidar da pessoa idosa implica também em uma situação bastante complexa. Esta disponibilidade estará atravessada pelo complexo de relações intergeracionais e intrageracionais que se iniciaram com a constituição do casal parental e pelas vicissitudes da transmissão psíquica, bem como pelo entrelaçamento complexo da história de cuidados de cada um. Entram em jogo a experiência dos cuidados que receberam dos pais no processo do seu desenvolvimento emocional e da constituição do si mesmo, bem como as angústias do complexo de Édipo e do complexo fraterno.

Impulsos amorosos, gratidão, culpa, rivalidade, ciúmes, raiva, inveja, angústia, mágoa, ressentimento: um caleidoscópio de afetos faz parte do complexo das relações verticais, intergeracionais, entre pais, filhos, genros, netos, tios e sobrinhos, e das relações horizontais, intrageracionais, ou seja, da conjugalidade do casal parental e dos demais casais da família, bem como das relações intragrupais de irmãos, cunhados e netos.

Amor, ódio, gratidão, ternura, hostilidade, espanto, frustração, decepção, assombro, luto antecipatório: como relacionar-se com esse estrangeiro tão familiar em que se transformou a pessoa idosa com demência? 

Cônjuge, filhas, filhos, noras, genros, netas, netos, sobrinhas e sobrinhos, cada um com seus recursos psíquicos e de seu lugar na família estará mobilizado nas suas possibilidades e na sua capacidade ou não de reconhecer as necessidades de dependência do familiar idoso e, da mesma maneira que a mãe suficientemente boa de Winnicott (Winnicott, 2000 [1956]), em presença sensível e confiável, adaptar-se a elas.

Entra em jogo a capacidade do familiar de oferecer hospitalidade, como o primeiro tempo da ética do cuidado, conforme modelo, baseado na teoria ferencziana, proposto por Kupermann (2017). A hospitalidade diz respeito ao "acolhimento daquele que não consegue enunciar em palavras as experiências determinantes do seu sofrimento" (Kupermann, 2019, p. 100).

Neste caso, inclui-se permitir à pessoa idosa "desfrutar da irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos de vitalidade positivos e razões para continuar existindo" (Ferenczi, 1992 [1929], p. 51).

A situação requer que o familiar/cuidador consiga identificar-se com a pessoa idosa em estado de dependência e ter sensibilidade e disponibilidade para a adaptação e satisfação de modo confiável das necessidades dela - sem intrusão nem abandono, sem cair na objetificação nem na sua infantilização -, favorecendo, dentro das suas possibilidades, o (re)criar e o (re)descobrir da realidade ao seu redor, estimulando a relação criativa com a realidade (Campos; Diniz Neto, 2019). Ou seja, a capacidade empática, que possibilita ao cuidador ser afetado pela pessoa idosa e afetá-la, o segundo tempo da ética do cuidado (Kupermann, 2017), uma exigência da situação que é muito delicada, já que entra em jogo o registro inconsciente de quando o sujeito foi cuidado e de suas fantasias de como foi cuidado pelos pais. Para Ferenczi (1992 [1928]), a adaptação da família à criança "só se dá se os pais se compreendem melhor eles próprios e assim chegam a adquirir uma certa representação da vida psíquica dos adultos" (Ferenczi, 1992 [1928], p. 2), o que se pode pensar que também se aplica à adaptação da família à pessoa idosa. Trata-se de falar com a criança que habita a pessoa idosa, o que implica poder vivenciar afetos e perceptos apropriados a essa experiência (Kupermann, 2008).

Por essa razão, cabe o terceiro tempo da ética do cuidado, que, nesse caso, seria o familiar dispor da sua saúde, de maneira a estar vivo e integrado nessa experiência de cuidar (Kupermann, 2017a).

Para concluir, salientamos que a pessoa idosa dependente demanda um ambiente sustentador, em grande parte atribuído à família, que a ajude no seu processo de integração psicossomática, mantendo a sua força vital. Entretanto, o cuidado do familiar idoso dependente deve passar pela possibilidade de o cuidador transformar essa vivência em uma experiência que lhe faça sentido, sendo, assim, integradora do seu próprio self e do desenvolvimento de sentido do seu si mesmo. Que o cuidador também se sinta real nessa experiência, vivendo uma vida que vale a pena!


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Glória Heloise Perez
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae


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