QUIMERAS

Xeque-Mate

Crônica de um caso que não foi adiante
Raul França Filho


Seu analista a tinha como um caso que não deu certo - uma partida de xadrez que não aconteceu. Um caso de échec (‘fracasso', em francês), e não d'échecs (‘jogo de xadrez', em francês).

Ele entendia ser esta uma metáfora possível para um processo de análise - estratégias para pôr abaixo uma ilusão de totalidade, atravessar defesas para derrubar o rei. A menina, para o analista, foi um caso de fracasso. O fracasso de seu desejo de analisar. Rei morto, e não posto.

A menina, assim chamada pela mãe e por ela própria, estava entre seus 19 e 20 anos. Uma menina e sua mãe católica.

Ela, a mãe, estava desesperada quando procurou o analista. No entender dela, sua filha estava se perdendo para a bebida.

Em resumo, a menina tinha jogado um vaso numa porta de vidro e se cortado com um caco, espalhando sangue pela casa, segundo a mãe.

O analista recebeu a filha no dia seguinte. Uma jovem simpática e gentil, de fala mansa.

Ela contou ao analista que ficou meio alterada, mas tranquila. Estava em casa com um amigo, tinham passado a tarde conversando sobre começarem uma marca de roupas - ele, o amigo, economista; ela, estudante de moda. Tomaram vinho, mas, quando o amigo saiu, ela percebeu que talvez tivesse bebido demais e veio a reação da mãe.

- Veja se é possível uma coisa dessas - dizia ela - uma menina em casa bêbada, e, em vez de cuidar dela, a mãe vem com sermão! Perdi a cabeça. Errei, eu admito, exagerei. Mas me sinto abafada pela minha mãe, ela se mete em tudo. Não me deixa viver a minha vida.

Terminada a sessão, o analista refletia sobre o que movia as pessoas a procurarem o doutor Freud na Viena do entreguerras, em comparação com as pessoas que ele próprio recebia em seu consultório, como a menina.

Tempos distintos, demandas diferentes. Ele reconhecia que a clínica dos excessos ia se tornando cada vez mais presente no consultório - fosse pelo álcool, pela comida ou por experiências não muito bem assimiladas.

Excessos que sobrecarregavam os corpos, tornando o sofrimento de quem o procurava não só psíquico. Não raro, o processo psíquico era posto de lado, numa espécie de curto-circuito entre o impulso e a ação, provocando arroubos de violência. E como as famílias participavam do surgimento e da manutenção desses quadros! Haja vista aquela que tinha acabado de sair.

Interessante notar como a mãe a descrevia e como ela aparecia para o analista. Para a mãe, uma filha bêbada e descontrolada; para a filha, alguém querendo ser uma menina normal da idade dela - que fuma maconha de vez em quando e gosta de tomar cerveja. Sem falar de suas queixas em relação à mãe.

O analista pensava nessas queixas. Seria ela o tipo de mãe que se adianta às necessidades da filha e ocupa o território necessário para que ela se desenvolva como sujeito, não vendo (ou não identificando) suas demandas?

Uma dessas mães que procuram oferecer por antecipação aquilo que elas próprias não tiveram na infância e impossibilitam qualquer estruturação do desejo infantil. Falta de desejo que, no curso da infância e da adolescência, ficará registrada como vivência de tédio, antes de se exteriorizar como atuações transgressivas ou trágicas passagens ao ato.

Estava diante de uma possibilidade de mãe intrusiva a ser observada, calculou o analista.

Só havia convergência no que diziam a menina e sua mãe a respeito do pai; divorciado e ausente, que, às vezes, de tanto a mãe se queixar, partia pra cima da filha. O pai também tinha seus ataques.

Delineava-se um pai omisso, que agia sob pressão, intempestiva e agressivamente. Um pai que acreditava cumprir sua função quando movido pela raiva - um pai truculento e fraco.

Em teoria, a passagem da menina pelo eu ideal do narcisismo até a saída do Édipo e a constituição do ideal do eu superegóico foi marcada pela fraqueza do pai ao ser convocado a desempenhar seu papel, o que faz com que ela possa ter um modo de organização narcísico - e quanto mais o ideal do eu for narcísico, maior será o distanciamento da realidade e tanto mais primitivas as defesas mobilizadas para escapar da angústia.

Mãe intrusiva e pai fraco era uma combinação explosiva para produzir estruturas neuróticas graves ou psicóticas. Mas, no entender do analista, não explicava o abuso de álcool da menina, e suas passagens ao ato ocorriam quando estava alcoolizada.

Como acontece com a estrutura da linguagem, que define o simbólico e nos faz humanos, pensava o analista, a passagem de um estado a outro responde a certas regras que definem essas transições - há pulos que causam curto-circuito e trazem consequências danosas ao psiquismo. Podemos pensar na passagem do Édipo e na passagem da adolescência para a vida adulta. Podemos pensar igualmente na pandemia, quando, da noite para o dia, fomos roubados. Uns não viram ou não entenderam, outros não tiveram como dizer o que estava acontecendo.

Mas o roubo aconteceu aos olhos de todos. Como lidar com quase 700 mil vidas subtraídas e um hiato no cotidiano que afastou a humanidade de parentes e amigos? Fomos dormir no dia 19 de março de 2020 e acordamos atordoados em 20 de março de 2022 com muita dificuldade para retomarmos o contato social, numa espécie de fobia coletiva. Se desejo é o desejo do outro, como desejar sem o outro? Colapso - deu tela azul no mundo, deu tela azul na vida de cada um, e os mais jovens foram os mais afetados.

Mesmo sem pandemia, a transição da adolescência para a vida adulta já era difícil, e muito mais sem os marcadores de um tempo atrás; havia rituais na sociedade que acompanhavam essa passagem, como balizas que iam amparando os jovens em suas dificuldades - uma espécie de liturgia. Mas esses rituais já não fazem mais sentido, porque as coisas acontecem muito rápido; e, de modo inverso à lógica dos rituais, a sociedade hoje pressiona os jovens por resultados, com as etapas da vida sendo sobrepostas, antecipadas ou com pouca transição. Condição contemporânea que leva cada jovem a descobrir, inventar, sintomatizar seu "adolescimento". Essa circunstância coloca os rituais, ou a ausência deles, em algum ponto da vida desses jovens situado entre o passado e uma possibilidade de futuro posta no presente.

No que se refere à adicção, há um meio de caminho da constituição do sujeito ao sintoma adicto que poderia tirar de cena a estrutura constituída - algum forte abalo emocional ou a própria ausência de rituais. Se o consumo abusivo de álcool e suas consequências são correspondentes a esse meio de caminho, sua origem não está na passagem do Édipo, dado que há uma estrutura constituída, assim como não está na genética, sendo o fenômeno atual.

No caso da menina, esse meio de caminho poderia ser a pouca presença do pai, agravada pela combinação de sua passagem para a vida adulta com o impacto da pandemia.

De fato, a estrutura estava lá; com pai fraco ou não, a menina não era psicótica - não era essa a hipótese do analista. Para ele, o que a levava às passagens ao ato era o abuso de álcool. E se a origem do abuso era atual, restava-lhe olhar para o fenômeno e procurar entender o que a menina queria entorpecer com o álcool e que sofrimento ela procurava mitigar, numa tentativa de automedicação.

A análise era uma possibilidade de ritual para a jovem - e, sem a confiança dela no analista, não haveria transferência possível, e qualquer oportunidade de balizamento cairia por terra. Mas o analista e a menina se falaram por poucos meses. Ou não se falaram muito. Nesse meio tempo, ela quebrou outros vasos, brigou com o pai, perdeu o ano na faculdade, saiu de férias, faltou mais do que compareceu e teve embates com a mãe.

Quando as crises se exacerbavam, a mãe voltava à carga no sentido de falar com o analista e obter dele informações sobre a filha - ou para passar a ele seu ponto de vista sobre o que acontecia com ela. Mas ele não podia ceder aos apelos da mãe e trair seu contrato com a menina.

Quando o analista e a menina se falaram pela última vez, ela estava acelerada por causa da faculdade, dizia-se incompreendida e tinha discutido com um professor que não a deixava exercer todo o seu potencial criativo como designer de moda -queixa similar à que ela tinha da mãe.

Dias depois, surgiu o pai por mensagem de texto. Muito nervoso, dizia que a filha não se cuidava, não tomava banho e não se depilava. Não encontrava um rumo na vida, segundo ele, que arrematou dizendo que ia dar um jeito naquilo.

Preocupado com os desdobramentos desse destempero para a análise da menina, o analista resolveu abrir um canal de comunicação com a mãe. Propôs que se falassem periodicamente. Achou que, se lhe desse algum espaço de conversa que a acalmasse, mas preservasse a menina, ela o deixaria em paz para trabalhar.

Ficou de combinar aquele arranjo primeiro com a menina na sessão seguinte. Mas ela nunca mais apareceu no consultório.

Quem voltou, depois de algumas semanas, foi a mãe da menina. Ela agradeceu ao analista por seu empenho em ajudar a filha e contou-lhe que tinham ido juntas conversar com um padre amigo. Com isso, ela estava testemunhando uma transformação maravilhosa na filha - ela não sabia o que o padre lhe havia dito, mas achava que alguma coisa tinha feito sentido para ela.

A mãe seguia alimentando seu ideal de filha.

Xeque-mate.

 

 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Raul França Filho
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) com especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. No Instituto Sedes Sapientiae, participa do grupo de estudos sobre Ferenczi, vinculado ao Departamento de Psicossomática Psicanalítica, desde 2021; e do Espaço de Estudo do Ensino de Lacan, desde 2019. Licenciado em Educação Artística pela Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).




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