RESENHA

A transferência e a contratransferência inscritas na clínica com bebês ditos autistas e/ou psicóticos: o recurso antitraumático essencial do clínico

Eloisa Tavares de Lacerda


BOUBLI, Myriam.

Corpo, psiquismo e linguagem: Bebês e crianças com autismo.

Organização da tradução brasileira Eloisa Tavares de Lacerda; Tradução Pedro Marky Sobral; Revisão da tradução Viviane Veras.

São Paulo: Blucher, 2023.

 

A transferência e a contratransferência inscritas na clínica com bebês ditos autistas e/ou psicóticos: o recurso antitraumático essencial do clínico

 

O transtorno essencial do autismo incide sobre as capacidades de colocar-se em relação e de conseguir decodificar e comunicar o seu próprio estado interno... Com efeito, dispor de uma linguagem oral não significa necessariamente comunicar, a não ser que haja condições propícias para retirar essa linguagem de seu hermetismo idiossincrático. (Boubli, p. 27)

 

Em O prazer do texto, Roland Barthes (1993) fala dos sons da língua, de sua fonética, desse "teatro das emoções" que busca a "linguagem atapetada de pele... a pátina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua" (Barthes, 1993, p. 86). É do confessado choque de seu encontro com esse potencial fônico que nos fala Myriam Boubli em Corpo, psiquismo e linguagem: Bebês e crianças com autismo, buscando pôr em pauta as primeiras notas dessas sonoridades, pondo-se à escuta dessa música corporal de cada criança que atende e acolhe, sempre se deixando surpreender com a descoberta do que desafia e mobiliza sua clínica.

Boubli nos convida a entrar em relação com esse fazer clínico tão especial, tão sensível quanto denso, e nos apresenta seu rico referencial teórico, marcado desde as primeiras páginas de seu livro por uma necessidade de ir além do inteligível e comunicável, e de reivindicar, e mesmo reclamar, a caminhada pelo "vínculo tão estreito entre o normal (ou mesmo o criativo) e o patológico" (p. 326), que abre o parágrafo que encerra seu livro. Nesse tempo a posteriori da escrita da clínica, entram em cena psicanalistas, linguistas e demais estudiosos da linguagem, além de artistas - poetas e músicos, como Louis Aragon, Samuel Beckett, Valère Novarina, Christophe Tarkos e John Cage, que trabalham com essa matéria sonora e despertam na autora o que ela chama de "duplo movimento de fascinação" pela construção da interioridade, com o desenvolvimento psíquico, e pela desorganização, o caos.   

O livro divide-se em três partes e propõe-se a nos conduzir pelas trilhas que ela percorreu entre o normal e o patológico, buscando reexplorar e descobrir novas perspectivas de atendimento e estudo da comunicação primária e de suas vicissitudes.

A primeira parte, "Sensações, excitações e modulações da atenção" (p. 25), trata de questões relacionadas à especificidade dos autismos na infância e às formas como alguns dos primeiros estudiosos, pesquisadores e clínicos lidam com esse desafio, considerando os fatores genéticos e não genéticos disso que exige uma "afinação afetiva", o trabalho com aquilo que inquieta e com as formas de atenção, entre vigilante e flutuante, voluntárias e automáticas, poéticas e criativas.

As hipóteses etiológicas, como a autora mesma indica, podem ser seguidas como pistas (deixadas por obras, mencionadas por Boubli, entre outras, de autores como Sigmund Freud, Leo Kanner, Bruno Bettelheim, Frances Tustin, Margareth Mahler, Donald Winnicott, Donald Meltzer) tanto na coexistência de elementos biológicos e relacionais (Boubli menciona Susan Hyman, Colwyn Trevarthen, Jean-Claude Elbez, Jean Dumas) quanto nas formas como são concebidos os transtornos psíquicos. A questão da origem desses transtornos se projeta: São inatos? Nascem de uma carência na relação entre bebês e seus pais? Trata-se de um fracasso no desenvolvimento - se for o caso, a que(m) se deve? O transtorno seria cognitivo?

Como decodificamos o mundo e nossos estados internos? A essa e outras questões levantadas vêm responder as pesquisas sobre as experiências sensoriais das crianças autistas, a noção de traumatismo e de objeto. A função da atenção vem sendo abordada por Freud desde seus estudos sobre as afasias (Freud, 2013 [1891]), e continua em sua busca da conexão com o objeto desejado e a ação específica que precisa fornecê-lo. Seria possível concentrar a atenção sem objeto, sem investimento? Atenção voluntária ou automática? As demandas exigem uma atenção conjunta (Boubli menciona Jean Laplanche, Dvorah Efrat-Boubli, Wilfried Bion, Bernard Golse, Thomas Ogden), porque é somente pela via da interpretação das "produções sonoras, olhares, posturas, tonicidade de seu bebê" que a mãe vai fazer deles "mensagens". Enfim, "um trabalho de simbolização a duas vozes" (p. 49): o bebê dá o impulso, e a mãe o retoma e amplia.

Para a discussão sobre os transtornos da atenção em crianças autistas, Boubli fala de um modelo multifatorial, que exigiria, portanto, um tratamento multidimensional. De todo modo, é preciso levar em conta a temporalidade e seu papel fundamental para o crescimento psíquico do bebê.  A hipótese da autora é de que é necessária a releitura da identificação adesiva da criança. Manifesta, então, sua reticência com relação ao tratamento dado à adesividade, sublinhando os efeitos de uma teoria sobre a observação. E é na observação clínica que ela se apoia para discutir os tempos de colagem e descolagem da criança ao objeto, o que eles têm de estruturante (Boubli dialoga com Esther Bick e Geneviéve Haag, além de outros autores).

Nesse ponto, Boubli desvia-se pelo mito de Eco e Narciso, no espelho dos olhos da mãe (dialogando com Winnicott e Jacques Lacan), trazendo o eco como "traço de um apelo que fracassou" (p. 79). Contudo, à sua moda, Eco responde e mostra-se mais ativa do que parece; e, se ambos morrem, é para que renasçam metamorfoseados pela energia do reflexo. Há um jogo de imitação entre bebê e mãe, há trabalho psíquico e já estamos "no campo da intersubjetividade e da interpulsionalidade" (p. 89) - investimentos que levam à construção da representação, ao controle pelo adulto da experiência que o bebê ainda não pode simbolizar (Boubli cita Piera Aulagnier, André Green e René Roussillon). A autora conclui a primeira parte falando da música linguageira e da vinculação das representações primitivas a significantes.

A segunda parte, "O som: uma matéria corpodinâmica intersubjetivante" (p.107), trabalha os ritmos de presença-ausência que constituem a temporalidade primeira, a forma como o bebê vai partilhar sua sensorialidade e motricidade com sua mãe. Com a boca e a língua no tratamento da matéria sonora, o sensorial, a prosódia e a fonação, nascem o grito e as lalações, aos quais psicanalistas e estudiosos da linguagem precisam dar ouvidos (a autora dialoga aqui com Roman Jakobson, Ivan Fonagy e Eric Buyssens), e Boubli apoia-se na fonética e na psicofisiologia dos sons da linguagem. Nesse movimento, segue a trilha da poesia: "os sons se mostram repletos de sensorialidade, sensualidades, não só para quem os profere, mas também para aqueles que os escutam" (p. 115) -, e eis o que lhe abre espaço para a escuta dos sons emitidos por crianças autistas e está no centro de suas reflexões.

O grito e o balbucio desencadeiam a vida; a matéria sonora ainda não palavrada fala conosco, e a escuta vai se diferenciar de acordo com as culturas e línguas. Boubli traz estudos que reconhecem nos bebês uma escuta seletiva desde seu nascimento (por exemplo, de Gabrielle Konopczynski e Vitor Guerra). Essa música vocal, singular de cada criança, vai se tornar, com a entonação e a interrupção prosódicas, a matriz em que se vão inserir os chamados elementos lexicais (a autora cita Jerome Bruner). A escuta dessa "matéria linguageira engaja modalidades relacionais e identificatórias" (p. 127) ligadas a aspectos relacionais, motores, posturais e gestuais, e precisa valer para crianças autistas e psicóticas. Essa escuta também está ligada ao que Melanie Klein chama de "memória do corpo" (Klein, 1996 [1935]): esses sons e gestos a que "a mãe atribui o estatuto de mensagem passa a se tornar uma mensagem" (p. 137).

Retomando uma discussão sobre o eco, Boubli traz o relato de duas observações de bebês com suas mães em cenas de trocas cotidianas e propõe os conceitos de "capacidade de resposta e incapacidade de resposta" (response-ability e response-inability) em jogo nos vínculos com crianças autistas e psicóticas - vínculos de amor, ódio e conhecimento (citando Bion). Retomando a visão etiológica que remete à inadequação do ambiente ou a deficiências da criança, a autora insiste em considerar tanto a qualidade da interação quanto a capacidade de apelo do bebê, de acordo com as funções da linguagem (dialogando com Karl Bühler).

A terceira e última parte, "Matérias sonora e sensorial como elementos de detecção do funcionamento do psíquico", traz os relatos clínicos de Boubli, pontuados pela exigência desse trabalho com crianças pouco ou mal organizadas (do ponto de vista da constituição de seu psiquismo), que se encontram mergulhadas "em uma espécie de confusão de línguas", e conclama à escuta de todos os sons - nada é insignificante. Trata-se de tomar todo som como apelo e de deixar-se tomar por ele, pôr-se em "estado de receptividade" (p. 179). Boubli ressalta que é preciso levar em conta as formas como as crianças Ève e Karl se apropriam de seus órgãos de fonação para produzir ou reter a matéria sonora. Entre a predominância dos sons vocálicos em Ève e as descargas consonantais de Karl, a autora traz a função poético-lúdica da linguagem presente no balbucio, a criatividade, e cita o poeta Manoel de Barros, que dá respeito às coisas desimportantes, e que se diz um apanhador de desperdícios.

Com o bocado de sensações de Ève, Boubli escreve um relato clínico modulado por canções infantis francesas, enquanto encontra em Karl uma boca sedenta de sensações e produções, que, de início, apenas rangia os dentes e soltava gritos de uma tonalidade que a afastava - pondo em cena questões transferenciais e contratransferenciais. Em seguida, ela analisa detalhadamente as matérias sonoras de cada criança.

Emitidas de boca fechada, as produções de Ève são contínuas, assim como os afetos se mostram amalgamados, sem ritmo, sem escansão, em uma oralidade marcada pela função fática -; leva três anos até que possa tolerar a separação entre palavras. Em Karl prevalece o grito, que funciona como barreira e apelo, fazendo eco aos gritos de sua mãe, em uma projeção sonora agressiva na qual prevalece a função conativa - com seis meses de terapia, tem início a modulação de suas produções sonoras, e ele consegue estabelecer com a terapeuta uma interação vocal mais suave, deixando emergir os afetos.

Boubli encerra o volume abrindo as cortinas do "teatro da boca" (p. 309) e trazendo a criatividade, as qualidades sensuais dos sons, ritmos e cores, e com elas a dicção dos artistas, suas linhas, cores e gestos. De repente, ela nos conduz a museus de arte moderna e se mostra iluminada, surpreendida e nos surpreendendo também com suas observações do mundo dos artistas.

Ao longo de todo o livro, lançado recentemente em português pela Editora Blucher, a autora nos mostra a importância de o clínico atentar para a compreensão da pulsionalização pelo circuito de narratividade, associações e investimento. Ela sublinha a importância dada à contratransferência com uma escuta atenta aos afetos que cada encontro convoca e sua aguçada percepção da transferência do bebê - para com seu pai, sua mãe e até mesmo para com a terapeuta.

Espero que esta sucinta resenha possa convocar o leitor a querer ficar mais e mais por dentro desse universo clínico e teórico, dessa forma tão criativa, profunda e humana, muito humana. E que sejam de Myriam Boubli as palavras finais:

 

A síndrome autística refletida de forma dinâmica parece poder ser utilizada como um arquétipo que pode nos ajudar a reexplorar, aprofundar e descobrir, sob uma nova perspectiva, a natureza da comunicação primária e suas vicissitudes. Espero que este trabalho ajude a desmontar a face demasiado construída e inteligível da linguagem, abrindo a novos horizontes, a uma forma de plurilinguismo adaptado às patologias com as quais trabalhamos. (p. 326)



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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Eloisa Tavares de Lacerda
Departamentos de Psicanálise e de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista. Membro dos departamentos de Psicossomática Psicanalítica e de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Fonoaudióloga. Mestre em Distúrbios da Comunicação pela PUC-SP. Professora aposentada da PUC-SP. Implantou e coordenou o curso "Clínica Interdisciplinar com o bebê: A saúde física e psíquica na primeira infância" da Cogeae/PUC-SP (2003-2010). Implantou e coordenou o Serviço de Assistência Relação Pais/Bebê da Derdic/PUC-SP (2004-2011). Implantou o Grupo de Estudos Clínica Psicossomática dos Primórdios do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Autora de dois livros e diversos artigos e capítulos. Organizadora do livro Clínica da constituição do laço: Corpo-linguagem-psicanálise. Atende em consultório particular. E-mail: elolacerda@uol.com.br


Referências bibliográficas

BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinzburg. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 86.

FREUD, S. (1891). Sobre a concepção das afasias - Um estudo crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

KLEIN, M. (1935). Uma contribuição para a psicogênese dos estados maníacos-depressivos. In: KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945). Obras completas - v. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

 

 

 


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