ARTIGOS

Da Fisioterapia à Psicoterapia – Os toques que afetam


From Physiotherapy to Psychotherapy – The touches that affect
Valquiria Sais

RESUMO
A fisioterapia é uma área da saúde com propósitos de tratamento de lesões físicas. Talvez devido à duração das sessões de fisioterapia aliada ao toque no corpo, frequentemente se estabelece uma notável transferência paciente-fisioterapeuta, em que componentes de um enquadre psicoterapêutico podem surgir, mediante um profissional não habilitado para lidar com tais competências. Este artigo apresenta dois casos em que esse “atravessamento” se deu durante a transição do fisioterapeuta para a psicoterapia psicanalítica e ilustra as vicissitudes dessa relação, que pode enveredar por caminhos diversos.

Palavras-chave: Fisioterapia, Enquadre, Transferência, Psicossomática Psicanalítica.

ABSTRACT
Physiotherapy is a health area with the purpose of treating physical injuries. Perhaps due to the duration of physiotherapy sessions combined with touching the body, a remarkable patient-physiotherapist transference is often established, in which components of a psychotherapeutic setting can arise, through a professional not qualified to deal with such skills. This article presents two cases in which this "crossing" occurred during the transition from physiotherapist to psychoanalytic psychotherapy and illustrates the vicissitudes of this relationship, that can take different paths.

Keywords: Physiotherapy, Therapeutical Setting, Transference, Psychoanalytic Psychosomatic.


A Resolução n. 80 do Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional descreve a Fisioterapia como uma "ciência aplicada, cujo objeto de estudos é o movimento humano, em todas as suas formas de expressão e potencialidades, com objetivo de preservar, manter, desenvolver ou restaurar a integridade dos órgãos, sistema ou função" (COFFITO, 1987).

Para isso, utiliza recursos manuais, térmicos, elétricos e eletromagnéticos, de acordo com o grau de comprometimento inicial. Tudo muito técnico, mensurável e preciso. No entanto, paralelamente a todo esse tecnicismo, acontece o encontro entre paciente e terapeuta, e a relação se dará, essencialmente, através do toque na pele, na prática, entre dois desconhecidos.

Didier Anzieu (2000) enumera, dentre outras funções da pele, a paraexcitação, a intersensorialidade, a entrada e saída de "conteúdos de fora", a permissão para ser ou não tocado, ou seja, a pele é a fronteira entre o dentro e o fora, o eu e o não eu.

Porém, na fisioterapia, não há escolha quanto a ser tocado. O trabalho fisioterapêutico é feito no corpo e está sujeito a tabus como o délire de toucher (‘delírio do toque') dos obsessivos, recalcamentos, proibições que podem se estender em linguagem figurada, com a expressão "entrar em contato" (Freud, 2012 [1912-1913], p. 54) e outros estranhamentos, quando se trata de toque.

Assim, nem sempre o paciente se acalma. A intersensorialidade pode ser percebida como invasão; os "conteúdos de fora" (gel, choque elétrico, calor, gelo) não são de escolha do paciente, algumas vezes produzem dor, além da falta de escolha quanto a ser tocado, o que pode gerar resistências. Freud (1969 [1912], p. 258) considerou que o que precisa ser esquecido coincide com a resistência, como uma atividade psíquica inconsciente, e isso se percebe na fisioterapia por meio de inflamações e dores que demoram mais do que o esperado para ceder ou que "mudam de lugar".

Além disso, as sessões de fisioterapia duram cerca de uma hora, tempo suficiente para que o paciente relate suas histórias em conversas informais, enquanto as técnicas são aplicadas, assim, é raro que um fisioterapeuta não estreite laços com seus pacientes. Na Fisioterapia, não há um filtro ético imposto, como há na Psicologia:

Art. 2º - Ao psicólogo é vedado:

[...]

j) Estabelecer com a pessoa atendida, familiar ou terceiro, que tenha vínculo com o atendido, relação que possa interferir negativamente nos objetivos do serviço prestado [...] (CFP, 2005)

 

Fisicamente, os pacientes apresentam sua dor; emocionalmente, expõem suas fragilidades.

Os pacientes vêm para a fisioterapia devido à perda de capacidades físicas, que pode ser breve, prolongada ou permanente, sempre com potencial de causar impactos emocionais. Enquanto estamos machucados, adoentados, nossa libido está voltada para o eu: "o doente retira seus investimentos libidinais de volta para o Eu, enviando-os novamente para fora depois de curar-se [...] a mais intensa disposição de amar desvanece[r] por causa de distúrbios físicos" (Freud, 2010 [1914], p. 26).

Nesse contexto, a dor é a grande representante e, em maior ou menor grau, paralisa os sujeitos. Não só a dor física, mas também a dor que substitui a palavra, o ato que substitui a expressão dos sentimentos, a irreversibilidade inegociável deixada por sequelas que se tornam o centro da vida. E, mais do que terapeutas, nós nos tornamos "parceiros", em muitos casos, em uma imago parental idealizada pelo paciente (Azevedo; Mello Neto, 2018).

O fisioterapeuta acompanha os pacientes por um tempo, até que estejam reabilitados. E a palavra reabilitação diz muito: "re-tornar hábil: ‘eu te ajudo até que você tenha condições sozinho'", em uma espécie de função materna, "aquela que propicia a identificação, nomeação e elaboração de conteúdos que assolam a criança/paciente e a aterrorizam" (Baptista, 2015, p. 106), intrínseca à Fisioterapia.

O fisioterapeuta usa lençóis térmicos nos dias frios, cobre as partes do corpo não lesionadas, usa apoios acolchoados, com o objetivo de dar conforto ao paciente durante o tratamento. Em termos técnicos, trata lesões, mas estas podem trazer desamparo, fragilidade e regressões no comportamento, que, frequentemente, se apresentam na transferência com o fisioterapeuta, pois "a prática da psicanálise nos ensina que uma dor intensa sempre nasce de um transtorno do eu, mesmo momentâneo; e que uma vez ancorada no inconsciente, ela aparecerá, transfigurada em acontecimentos penosos e inexplicados na vida cotidiana" (Nasio, 2006, p. 11), além de ser "perfeitamente normal e inteligível que a catexia libidinal de alguém que se acha parcialmente insatisfeito, uma catexia que se acha pronta para antecipação, dirija-se também para a figura do médico" (Freud, 1969 [1912], p. 134).

De maneira singular, os fisioterapeutas Tocam - com T maiúsculo -, ou seja, a atenção dispensada junto com os procedimentos técnicos, aliada ao toque, abre caminhos para uma transferência, às vezes, maciça por parte de alguns pacientes, emergindo dores emocionais, recordações de cenas traumáticas, insights, choro, pois,

 

se a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade, ele está fadado a aproximar-se de cada nova pessoa que encontre com ideias libidinais antecipadas; e é bastante provável que ambas as partes da libido, tanto a parte que é capaz de tornar-se consciente quanto a inconsciente, tenham sua cota na formação dessa atitude. (Freud, 1969 [1912], p. 134)

 

Assim, afetos diversos perpassam a Fisioterapia, o fisioterapeuta, o propósito inicial de um trabalho essencialmente físico, em um enquadre que não se propõe a isso, e muito do que seria um trabalho psicoterapêutico atravessa o fisioterapeuta, que não tem qualquer preparo para isso, deixando-o muitas vezes com a pergunta: "o que fazer com isso?".

 

Fisioterapia ou fisio-terapia?

Na prática da fisioterapia, é frequente o profissional deparar com casos interessantes e agradáveis de atender, pacientes que o desafiam por sua inteligência e crítica aguçadas, os "operatórios" (Volich, 2000, p. 152), despertando uma série de fenômenos que podemos considerar como transferenciais, que podem ocorrer sem a consciência do fisioterapeuta, afetando-o por meio de desconfortos de ordem variada, tanto no corpo quanto em seu psiquismo. Tomando isso como base, o presente artigo apresenta fragmentos de dois casos clínicos que ilustram o tema, com desfechos diferentes.

 

Ouça-me, por favor

Desirée (nome fictício), mulher de cerca de 50 anos, com sobrepeso localizado na região de quadril e pernas, chegou ao consultório com queixa de dores em um dos joelhos. Nascida no interior de São Paulo, tinha um sotaque bem marcado, sempre em tom de voz alto, era impossível passar despercebida.

Sua chegada na clínica era sempre notada. Com roupas sempre longas, coloridas e esvoaçantes, chegava falando com as recepcionistas sobre o tecido das almofadas, o comportamento de outros pacientes ou terapeutas que passavam. Justificava sua maquiagem sempre forte como empecilho para não chorar, como se estivesse sempre por um fio.

Começamos a trabalhar com fisioterapia convencional no joelho, o qual trouxe a queixa, mas, poucas semanas depois, o joelho contralateral passou a incomodar, e ela afirmou que ele já doía, menos do que o outro, mas já doía. Passei então a tratar os dois. Poucas semanas depois, ela chegou com muita dor lombar, questionando se não era por causa dos exercícios que havíamos feito. Mais uma vez, incluí fisioterapia para lombar e um trabalho de fortalecimento abdominal, de praxe nos tratamentos lombares.

Tempos depois, começou a referir dores incapacitantes em um dos ombros, que a levaram a um médico ortopedista. E, como eu já esperava, o ombro contralateral começou a doer - assim como acontecera com os joelhos -, e passamos então a fazer duas sessões por semana. Os exames de imagem não justificavam a dor que ela referia, mas como dor é algo subjetivo (Souza, 2002), passei a modular a intensidade da fisioterapia.

E assim, por dois anos e meio, fui atendendo a todas as suas demandas, e a vinda dela ao consultório passou de grande desafio a pesadelo. Isso porque, como de costume, enquanto aplicamos a fisioterapia, conversamos, e ela foi discorrendo sobre sua vida desde o início.

Ela foi me contando de um mundo que a rejeitava sempre. Alguns exemplos do mundo hostil que ela habitava: uma mãe belíssima e sempre ocupada consigo mesma e, assim, difícil de estar à altura; um pai inteligentíssimo e, assim, difícil de estar à altura; um ex-marido um tanto dependente dela (nessa época, ele havia perdido o emprego e voltara a morar com ela, como amigo); um filho que apresentava "alguma sociopatia indefinida", mas que o pai "estragou", e não havia o que ela pudesse fazer; uma filha "egoísta, que mal a visitava ou fazia coisas que demonstravam que a odiava"; ex-colegas de trabalho que "fizeram sua caveira" quando ela saiu do último emprego formal (nessa época, era consultora); e uma amiga "que poderia lhe passar mais trabalhos, mas que seu nível de exigência era tamanho que nada do que fazia lhe parecia bom".

Suas relações parentais talvez justificassem o modelo reativo que assumiu nas demais relações que descrevia. Apontava no mundo todo o defeito que via, colocava para si mesma a razão e, diante de qualquer discordância, se punha a dizer que seu interlocutor não a havia compreendido, partindo para mais argumentos em uma oitava acima de agressividade. Como elucidou McDougall, "a ‘catástrofe' interna que atingiu a capacidade de pensar e elaborar afetos só se deixa adivinhar por trás dos atos do paciente - atos que ainda não são traduzíveis em pensamentos ou comunicações" (McDougall, 1983, p. 101).

Sua inteligência argumentativa reivindicava, a todo momento, um lugar de reconhecimento, sempre frustrado. Meu lugar de cuidadora interessada em suas histórias e em resolver sua dor fez das horas de fisioterapia seu alvo inconsciente de mais uma tentativa. No início, eu arriscava aqui e ali um questionamento - uma opinião, pensando mais em dar espaço do que em propor algo, até que um dia ela me calou, dizendo: "Você não é minha terapeuta, você é minha fisioterapeuta". Interpretei, à época, que ela precisava apenas ser escutada. Meu lugar de fala se calou - afinal, ela tinha razão, eu era fisioterapeuta, àquela altura, quase exclusiva "dela"! -, restando-me o lugar de escuta muda e meu papel de fisioterapeuta. E assim prosseguimos.

A maneira como Dejours (1991) define a dificuldade de lidar com um paciente que faz uso de uma "defesa que nos inibe de pensar, que nos paralisa, manipula nosso pensamento [...] pela sua neutralização - o pensar analítico" (Dejours, 1991, p. 47), sob o argumento de que eu não tinha o direito, estava em pleno andamento. A todo o tempo ela me testava, como que para poder existir, caso eu sobrevivesse a seus domínios, com uma "demanda de amor que se trata [...] de inscrever seu ser no desejo do outro, de poder começar a existir por sua própria conta" (Dejours, 1991, p. 78).

No entanto, meu silêncio também não rendeu frutos. Suas exigências aumentavam a cada semana. Ora eu tinha exigido muito esforço na última sessão e por isso ela ficara "acabada", ora não estava muito disposta, pois não tinha dormido, ora questionava por que a dor lombar que havia desaparecido voltara de maneira intensa. E eu ia modulando as sessões de acordo com suas queixas, em um corpo que ia se mostrando cada vez mais sensível, na medida em que ela ia contando os dissabores de sua vida.

Ainda nas palavras de Dejours, "a transferência desencadeia nele [o paciente] uma vontade de petrificar o analista" (1991, p. 47), e, certamente, eu ia me petrificando a cada nova dor e a cada novo dissabor que ela me contava e sobre o qual eu deveria me calar. E meus ouvidos e minha consternação, aliados à minha sensação de incompetência a cada articulação nova que doía, iam me afundando, enquanto criava mais espaço para ela, em que "o desafio da transferência ficava duplicado, nesse caso, por uma relação mortífera, que às vezes leva a melhor sobre o vínculo erótico e sobre a demanda de amor" (Dejours, 1991, p. 72).

Passei a interagir menos verbalmente, mas sempre com olhar e ouvidos atentos, vendo-a só piorar. Quanto mais eu cuidava, mais agressiva ela ficava e mais dores sentia.

Por essa época, apresentei um seminário sobre o texto "A contratransferência e a comunicação primitiva", de McDougall (1983), que apresenta o caso de Anabela Borne, cuja agressividade na direção da terapeuta funcionava como um ato, um pedido de socorro, uma tentativa inconsciente de entrar em contato com sua própria dor psíquica, produzindo dor na psicanalista. Désirée era minha Anabela Borne em sessões de fisioterapia!

 

[...] pacientes cuja angústia está centrada principalmente [...] no investimento de si, vai dar necessariamente uma dimensão específica à relação transferencial. Trata-se de uma transferência fundamental - transferência original que procura anular a diferença entre o eu e o outro - ao mesmo tempo em que teme uma fusão mortífera. (McDougall, 1983, p. 112)

 

Percebi, então, o quanto minha escuta - ou meu imposto silêncio - não estava construindo nada com a paciente, embora eu continuasse "aguentando" as sessões, pois seu discurso foi afunilando, a ponto de ela dizer que eu estava sendo a única relação que tinha. Se, inconscientemente, o que ela queria era produzir compaixão em mim, conseguira por todo esse tempo. A armadilha que se armara era de que ela não poderia melhorar. A reabilitação a condenaria à solidão.

Com ingenuidade e na intenção de abrir um espaço para a escuta, tornei-me objeto de sua agressividade desordenada. "O sofrimento desses anos foi também dividido comigo, obrigando-me a um trabalho paralelo de elaboração de minha transferência em relação a ela" (McDougall, 1983, p. 106).  

Seguindo as palavras de McDougall (1983), Désirée descarregava suas tensões dolorosas por meio de um discurso cuja intenção oculta era dividir aquilo que não lhe era possível dizer com palavras, "um drama pessoal, que internamente ela não podia conter" (McDougall, 1983, p. 110), com as pessoas que a cercavam. Sempre que me via afetada, esgotada ou triste, como acontecera algumas vezes, ela se acalmava, seus olhos ficavam ligeiramente mais abertos, e ela ia embora, em nítido gozo, reafirmando que eu era uma fisioterapeuta muito competente, e que ela era imensamente grata por meus cuidados.

Na supervisão, chegamos à conclusão de que eu e Desirèe havíamos estabelecido uma relação sadomasoquista. Autorizei-me a deixar de atendê-la, embora sem saber como faria isso, pois, contratransferencialmente, contraía-me em tensão ao pensar nisso.

Na sessão subsequente à supervisão, ela trouxe a "deixa" de que eu precisava. Entrou dizendo que, na última sessão, havia se sentido violentada por mim. Como não havia absolutamente nada de que eu pudesse me recordar como violência em sua direção, sentei-me na maca perplexa e não disse nada, apenas me pus, corporal e facialmente, a ouvi-la. Ela relatou seus motivos, cuja descrição entraria em detalhes que poderiam ferir a privacidade da paciente. Cabe apenas esclarecer que sua queixa se relacionava ao manejo das roupas durante as intervenções fisioterapêuticas. Talvez a tensão que se tornara minha companheira sempre que ela chegava me tenha feito esquecer de pronunciar "com licença" em algum procedimento corriqueiro. Nunca vou saber.

Aproveitando a oportunidade, comuniquei que não poderia mais atendê-la. Meus motivos passavam por esgotamento, desconforto e tensão pelo esforço constante que eu precisava dispender e, apesar disso, percebia que não a estava ajudando. De forma inegociável, estava "jogando a toalha".

Estava preparada para uma enxovalhada da mais alta agressividade, que não veio. Ela apenas disse: "Eu tento, eu tento, mas sempre acabo perdendo todo mundo". Minha decisão era definitiva, mas sua resposta me levou à perplexidade: era como se, durante todo o tempo de fisioterapia, aquele dia, de ruptura de mais uma relação, chegaria.

Foi inegável o encontro das minhas singularidades com as singularidades dela. Rendeu-me muito trabalho psíquico em terapia. E se é no campo transferencial que o trabalho psíquico do analista exerce efeitos terapêuticos, pude pensar o quanto o enquadre fisioterapêutico pode ser tanto uma estrada aberta quanto um campo minado. Nossa relação deu margem a grande abertura afetiva, enormes possibilidades de descargas inconscientes, mas terminou da mesma forma que outras relações da paciente: em ruptura.

 

Doer para existir

Tamara (nome fictício), 53 anos, diagnóstico de artrite reumatoide e prescrição médica de imunossupressor, sempre chegava com um certo peso no olhar. O corpo sempre cansado, dolorido, castigado por inumanas horas de trabalho autônomo e sacrifícios pela família, pelos funcionários e pela obrigação infinita de atender seus clientes com absoluta perfeição. 

Começamos uma fisioterapia "no melhor dos mundos" para um fisioterapeuta: sem pressa. Ela dizia que a fisioterapia era o "seu momento".

As dores migravam de uma articulação para outra. Com o tempo, fui percebendo que, quando eu apontava que algo havia melhorado, ela discordava, e outra dor surgia. Fui aprendendo que as dores não poderiam ser "retiradas" dela (Venturini, 2007).

Com base nos fragmentos de queixas que ela se permitia trazer, sempre se desculpando, fui percebendo uma pessoa que vivia em função dos outros, com uma capacidade quase nula de colocar limites em quaisquer relações.   

Na sua história pregressa, houve um pai que viajava muito a trabalho, deixando sua mãe sobrecarregada e fazendo de tudo um pouco para completar a renda da família.

Uma irmã mais velha tinha privilégios para estudar, em detrimento dos outros da casa; um irmão caçula tinha dificuldades de sociabilização e dependia de constante supervisão e ajuda financeira, restando a Tamara a incumbência de ajudar a mãe, sem lugar para as próprias necessidades.

Um intelecto sempre muito valorizado pela família regia seu emocional, fazendo-a rechaçar qualquer correlação entre suas dores e a vida que levava.

Seu diagnóstico de artrite reumatoide sempre fora uma incógnita para mim. Em nove anos, nunca a vi com os sinais clássicos de artrite reumatoide, segundo os critérios do CID-11 (Organização Mundial de Saúde, 2021), mas, simbolicamente - e de fato -, suas articulações estavam sempre com sobrecarga, e somente através das dores é que ela se permitia parar e cuidar um pouco de si mesma: sua fisioterapia, sua reumatologista, seu sábado à tarde no sofá, que inúmeras vezes a trouxeram à fisioterapia por torcicolo. E assim pude testemunhar a função econômica da dor, a experiência da dor física como paradigma da dor psíquica (Nasio, 2006, p. 10).

Suas queixas constantes levavam a reumatologista a indicar-lhe, paralelamente, outros medicamentos ou intervenções físicas, que lhe traziam efeitos colaterais dramáticos. Voltava à fisioterapia exaurida, mas aliviada por ter passado por um "tratador" qualquer. Parecia estar inscrito em seu rosto algo como "fui cuidada, mas estou culpada", fazendo meu coração "contratransferido" doer ao ver aquelas intervenções que tratavam ferindo-a.  

Eu a fui acolhendo após cada evento desses, continuando com uma fisioterapia cuidadosa, na tentativa de devolver-lhe algum conforto para passar sua próxima semana. Saía tão reconfortada e grata após cada sessão como voltava destruída na próxima, como se sempre fôssemos começar do zero.

Seis anos depois, por indicação minha, procurou uma colega fisioterapeuta e iniciou hidroterapia. E, desde então, trata-se somente conosco e com imunossupressor. Pensei no acolhimento que a água quente e o "colo" da fisioterapeuta dentro da piscina poderiam lhe proporcionar. Vinculou-se a ela como a mim e nunca mais procurou outros tratamentos. 

O apoio e o acolhimento dispensados nas sessões de fisioterapia, além da técnica, foram, paulatinamente, produzindo resultados positivos. A paciente foi ganhando alguma estabilidade, colocando limites, ainda que tênues, nas relações, por entender suas necessidades de descanso, dispensando funcionários-problema e convocando mais a família para tomar decisões.

Talvez nós, as fisioterapeutas, uma na terra e a outra na água, lhe tenhamos proporcionado um par de cuidadores que, inconscientemente, ela se ressentia por não ter tido. Parafraseando Kohut (Azevedo; Mello Neto, 2018), talvez nossa parceria lhe tenha proporcionado um "brilho nos olhos" em sua direção, em resposta aos seus apelos delicados e educados, cheios de respeito e gratidão pelo nosso trabalho conjunto. Uma fisioterapia "bem-sucedida", digamos, recheada de humanidade psicossomática. 

 

Conclusão

Freud partiu de uma certeza de que os pacientes que compreendessem bem o processo analítico não correriam o risco de recorrer à fuga da análise ou a novas resistências para a constatação de que o paciente poderia, sim, fugir "a partir de qualquer camada mais profunda em que se ache uma resistência especialmente forte" (Freud, 2012 [1914], p. 302). De igual maneira, é possível que o corpo manifeste resistência na fisioterapia, através de seus dialetos inflamatórios e dolorosos, do que não consegue simbolizar. Isso é perceptível nos casos em que, apesar de todas as intervenções estarem tecnicamente corretas, dores "reagudizarem" sem causa aparente ou "mudarem de lugar" durante o tratamento, mostrando que curar a lesão o leva para alguma "perda" psíquica. E assim, em detrimento de todo o seu tecnicismo, atravessam a fisioterapia e a relação paciente-fisioterapeuta a transferência e a resistência, conceitos trazidos da Psicanálise, impondo ao enquadre certas habilidades fora da alçada dos profissionais fisioterapeutas.

"Nas instituições em que doentes dos nervos são tratados de modo não analítico, podemos observar que a transferência ocorre com maior intensidade [...] apresentando o mais claro colorido erótico" (Freud, 1969 [1912], p. 136). E ainda: "quando algo no material complexivo [...] serve para ser transferido para a figura do médico, a transferência entra em cena e se anuncia por sinais de resistência" (Freud, 1969 [1912], p. 138).

Partindo desses pressupostos, os casos apresentados foram emblemáticos para minha transição para a psicoterapia. Desafiaram-me a perceber a transferência através de atos; modular a intensidade da minha presença para não incitar somatizações; aprender, tateando na escuridão da ignorância, quando intervir e quando calar, em um percurso invertido, do empírico ao teórico, já que eu estava em formação, e a minha atuação nesses casos era somente como fisioterapeuta.

A teoria psicanalítica, sorrateiramente, infiltrou-se em minha clínica a cada dia, sutilizando minhas práticas para além de qualquer refinamento que meus anos de experiência com terapias manuais me tivessem proporcionado, ajudando-me a desenvolver critérios de fala e de escuta apropriados. Um desafio e tanto, já que, do outro lado, havia seres humanos confiando-me suas dores do modo que sabiam fazer. Seus núcleos eram tocados, cada um a seu modo, e rechaçados, cada um a seu modo, como crianças que esperneiam ou se tornam submissas em troca de alguma possibilidade de amor. E como a libido à disposição do indivíduo está sempre sob a influência da atração dos seus complexos inconscientes, a resistência pode aparecer, em resposta aos cuidados do fisioterapeuta, através da piora da dor, da mudança de queixa e de novas cronicidades, produzindo sensações de falha de conduta.

Em "Projeto para uma psicologia científica" (1950 [1896]), Freud aponta que qualquer estímulo acima do limiar da função do órgão produz dor, ou seja, a função é corrompida pela intensidade. Se o toque, a sensação de ser cuidado e uma relação amistosa não fazem parte do repertório do paciente, ou estão associados a alguma memória sensorial traumática - adquirida antes da fala ou foracluída -, o trabalho do fisioterapeuta pode produzir abalos psíquicos inusitados, para o bem e para o mal. O trabalho do fisioterapeuta pode tocar algo do irrepresentável, do que estava escondido ou adormecido, mas, acima de tudo, pode fazer emergir o que se fazia entender através de traumatismos físicos e da dor que os acompanha.

A palavra trauma vem do grego e significa ‘ferida' (Ferreira, 1999). Os casos relatados mostram o potencial de tocar outras dimensões dessa palavra, a importância da relação fisioterapeuta-paciente para além de todo o tecnicismo da Fisioterapia e, muito abaixo dos tecidos palpáveis, a emergência de oceanos profundos de possibilidades que aguardam o momento para, finalmente, serem vistos, ouvidos e cuidados.

E, no afã de compreender mais e mais todos esses dialetos, sigo aprofundando essa trama abrangente contida na clínica, apoiando-me nos estudos da Psicanálise para entender, a cada novo paciente, seu dialeto particular.


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Valquiria Sais
Universidad John F. Kennedy


Fisioterapeuta. Mestranda em Ciências Psicológicas com Ênfase em Psicanálise - Universidade John F. Kennedy, Argentina. Especialização em Somatic Experience (SE) pela ABT - Associação Brasileira do Trauma. Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialização em Fisioterapia Neurológica pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Bacharelado em Fisioterapia e Reabilitação pela Universidade do Grande ABC. Atuou dois anos no PAES - Unifesp (grupo de somatizadores). Atua em consultório particular. Apresentadora do Entre Vistas, podcast sobre saúde mental do Spotify.

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