Introdução
A palavra gênero[1] foi empregada na área médica nos anos 1950, para designar crianças que deveriam ser cirurgicamente "corrigidas" para sexo masculino ou feminino: as chamadas hermafroditas e, posteriormente, intersexuais.
Com a reavaliação atual dos discursos relativos aos atributos sociais de sexo e de gênero, tornou-se difícil pensar em uma identidade "primeira": a identidade de gênero é performativamente constituída, através da repetição de atos, gestos, signos e outras séries de elementos que, por sua vez, reforçam a construção dos corpos masculinos e femininos. Não existem "relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo": os caminhos identificatórios e as construções de gênero são independentes da anatomia (Butler, 1990, p. 38).
O sistema sexo/gênero vem sendo submetido a duras provas, levando-nos a repensar as modalidades de subjetivação e, por extensão, o binarismo de gênero (Bertini, 2009; Butler, 1993, 2003, 2004; Croix e Pommier, 2018; Sousa Filho, 2017; Fraisse, 1996; Laqueur, 1992).
O gênero é um continuum entre dois extremos performáticos - o "todo masculino" e o "todo feminino". Com base em sua história, cada sujeito situa-se na parte do continuum com a qual se identifica, de forma durável ou provisória.
Levar em conta a diferença anatômica é atribuir uma dimensão política ao discurso que daí decorre. Não há mais lugar para um discurso que anule a diferença, valorizando um sexo (o que possui, o que não é castrado) em detrimento do outro (o que não possui, o que é castrado), o que daria continuidade à desigualdade entre os sexos e entre os gêneros.
Todo esse movimento propiciou novas leituras de gênero, afetando diretamente o modelo heteronormativo e cisnormativo (Porchat, 2014).
Gênero na psicanálise
Nas primeiras páginas do primeiro dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1976 [1905]) nos fala sobre Der populären Theorie des Geschlechtstriebes, traduzido como "a teoria popular sobre pulsão sexual". Contudo, a palavra Geschlecht é também usada para falar de gênero.
O mesmo "problema de tradução" se observa no texto sobre o narcisismo. Um dos caminhos que Freud (1914) propõe para estudar o tema é Das Liebeslebens der Geschlechter. Essa passagem foi traduzida por Luiz Hans (Freud, 2004 [1914a], p. 103) como "a vida amorosa entre gêneros"; já na Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud ela está traduzida como "a vida erótica dos sexos" (Freud, 1976 [1914b], p. 98).
No texto de Freud de 1908, "Sobre as teorias sexuais infantis", somos convidados a nos despojar de nossa "existência corpórea" e, como "seres puramente pensantes" que chegassem à Terra, observar se nos chamaria a atenção a existência de dois seres, cuja distinção não levaria em conta a anatomia, isto é, a diferença sexual.
Para Freud (1976 [1908]), existiria uma classificação - que, atualmente, chamaríamos "de gênero" - anterior à percepção da diferença anatômica: o gênero viria primeiro, embora seja o sexo que o determine (Laplanche, 2006).
Mudanças discursivas
Como escutar os sujeitos que não se enquadram nos conceitos universais de sexo e de gênero (as identidades sexuais cis e trans, os sujeitos não binários, por exemplo), nem nas categorias de masculino e feminino?
Argumentar que existe algo inato no humano que faz coincidir as relações de sexo/gênero com as categorias sociais de homem e mulher seria o mesmo que tratar sujeitos não binários e os transexuais como perversos, ou psicóticos, pois escapariam à lógica fálica apresentada nas fórmulas de sexuação.
Considerando que masculinidade e feminilidade são "pontos de chegada e não de partida" (Freud, 1976 [1908]), tais conceitos são construções tributárias da história dos processos identificatórios e do lugar que o recém-nascido, candidato a sujeito, ocupa no desejo de quem lhe deu um "berço psíquico" (Ceccarelli, 2013a). Masculinidade e feminilidade são convenções sociais, resultado de processos complexos, sem predisposições instintuais herdadas (Freud, 2010 [1930]).
Sujeitos não binários, assim como os que possuem outras expressões identitárias, levaram-nos a revisar alguns dos pressupostos teórico-clínicos, para evitarmos modalidades de subjetivação que ditam o normal e o patológico, produzindo uma nova ordem repressiva (Ceccarelli; Levy, 2012).
Colocar a psicanálise como detentora de um saber que dita os caminhos "normais" de subjetivação equivale a transformá-la em um discurso fundamentalista.
Graças às mudanças discursivas trazidas pelos movimentos sociais, assistimos, no dia a dia da clínica, modalidades de subjetivação que traduzem novas possibilidades de alienação no desejo do Outro: sujeitos transgêneros, transexuais, assexuados, bissexuais, pansexuais, sujeitos não binários, homem com vagina, mulher com pênis e outros tantos.
Reflexões finais
Os movimentos sociais e as novas formas discursivas, que levam a uma nova ordem social, a "um novo paradigma" (Kuhn, 2006), ocorrem graças às mudanças na circulação dos afetos: a angústia é causa, e não consequência, dos movimentos sociais.
Quando o corpo se torna o lócus privilegiado de manifestações do pathos, o sofrimento, tal como observamos nos fenômenos psicossomáticos, merece especial atenção. A intersecção entre cultura, subjetividade e sofrimento não pode ser ignorada, sobretudo nas formas em que as doenças orgânicas se apresentam, no cotidiano da clínica, em sujeitos que não respondem às expectativas heteronormativas.
Por anos, algumas sociedades de psicanálise ouviram os sujeitos não binários, assim com os que apresentavam uma identidade trans, como portadores de algum "distúrbio do desenvolvimento". Ao mesmo tempo, esforçavam-se, obstinadamente, para "curar" pessoas "narcisicamente doentes", as homoafetivas, além de impedi-las de fazer parte da sociedade psicanalítica em questão (Ceccarelli, 2012).
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ano - Nº 5 - 2023publicação: 25-11-2023 |
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