ÁGORA
TEMA

Tudo Começa em Freud



Somos muitos carnavais

 

É louvável a iniciativa de propor o debate, tão contemporâneo e tão necessário, sobre a transgeneridade no âmbito da revista Trama, que é uma realização do Departamento de Psicossomática. A proposta é que os debatedores discutam "a questão psicossomática nas construções identitárias, quando o corpo biológico se desencontra da percepção e representação psíquica que o sujeito constrói de gênero e de Eu. Um Eu que, antes de mais nada, seria um Eu corporal". Fica assim assumida, pela revista, a clássica definição do transexualismo, segundo Rafael Cossi, "como a incoerência entre gênero e sexo. E também como o sentimento de pertencer a um sexo (identidade sexual) oposto à configuração anatômica" (Cossi, 2011, p. 31).

Interessante observar como a noção de identidade permeia toda a proposta de discussão. Haveria sempre construções identitárias. Não que, na proposta de debate, não fique clara a necessidade de questionar identidades fixas e universais "a que hoje estamos expostos em nossa cultura". Mas parece ser muito difícil pensar que talvez não tenhamos um suporte identitário, e isso não só em relação aos que quebram os paradigmas tradicionais do desejo, mas em relação ao humano. Laplanche, no brilhante ensaio "O gênero, o sexo e o Sexual" (2015), quer pensar se a tendência atual de "falar em identidade de gênero", no lugar de "identidade sexual" é "uma simples mudança de vocabulário ou se isso é mais profundo" (Laplanche, 2015, p. 155).

Em 2014, dirigi e lancei o documentário De gravata e unha vermelha. A partir das entrevistas que a cartunista Laerte concedeu, encantei-me e decidi explorar o quanto o desejo é necessariamente libertário e não se amolda ao que a cultura denomina como sendo o feminino e o masculino. O sexual é sempre o que irrompe e ultrapassa barreiras. Aliás, Nathalie Zaltzman afirmou: "afinal, ninguém vive bem com seu sexo" (Zaltzman, 1999, p. 103). Quando escolhi filmar figuras que bancavam seu desejo, eu não buscava trans ou homo ou seja lá quem fosse da infinita sigla LGBTQIA+. Meu interesse era pelo desejo, pela sexualidade. Eu achava que poderia saber de todxs nós ao me aproximar da coragem de um Ney Matogrosso, da Taís, que não queria se deixar determinar por um estado repressor e policialesco, de uma Laerte, de Rogéria precursora e tantxs outrxs. Era a sexualidade sempre disruptiva que eu tinha como tema.

A ideia do documentário surgiu inspirada nx cartunista Laerte. Em 2010, x cartunista Laerte apareceu, já aos 60 anos, vestidx de mulher. E surpreendeu o mundo. Laerte sempre foi conhecidx como cartunista.

Em entrevista a Ivan Finotti, na Folha Ilustrada (Finotti, 2010), afirma Laerte: "O travestimento é uma questão de gênero, não de sexo. São coisas independentes, autônomas, que nem o executivo e o legislativo. É um erro fazer essa mistura. ‘Ah, está vestido de mulher, então é viado.' ‘Jogou bola, é macho.' E eu que gostava de costurar e de jogar bola? [...] Não se rompe isso facilmente. Desafiar esses códigos perturba todo o ambiente ao redor de você".

Laerte revolta-se contra a ditadura dos gêneros: "É você sentir que sua liberdade está sendo tolhida, as possibilidades infinitas que você tem de expressão na vida, ao sair, ao se vestir". Impressionou-me sua liberdade na determinação de como viver a sexualidade.

Várias figuras do documentário contam suas histórias, e são histórias de dor e alegria. O documentário termina com Dudu Bertholini definindo-se como um gender-fucker, alguém que não se importa em se definir binariamente. Aliás, hoje é bem frequente encontrar pessoas que preferem se dizer não binárias.

Depois que o filme foi para os cinemas, em 2014, fui chamada em algumas escolas para conversar sobre a questão do gênero. Em um desses encontros, uma adolescente, depois da minha fala, perguntou: "O que eu faço se não me sinto nem menina nem menino?" Eu tentei tranquilizá-la, dizendo que não se apressasse, que é o nosso mundo que não suporta as múltiplas faces da sexualidade e logo precisa definir uma criança como menino ou menina, seja a partir do corpo anatômico, seja a partir de características psicológicas.  

Aliás, isso de falar em crianças transgêneros começa com Stoller, que já via sinais em crianças de uma identidade masculina ou feminina. Isso tem levado à medicalização precoce e bastante danosa nos meios médicos, até hoje.

Sabemos que o conceito de identidade é polêmico no âmbito da psicanálise. Na acepção comum, vem sendo desenvolvido mais com base em analistas que formularam e conceituaram a noção de self. Freud falou, isso sim, em processos de identificação, o que é muito diferente. É quando Freud elabora o que foi nomeado como sendo sua segunda tópica, com o trabalho "O Eu e o Isso", em 1923, ao falar do "caráter do Eu" como sendo formado pelo conjunto de identificações que cada sujeito vai fazendo no decorrer de sua história, que ficou em questão a noção de identidade. Passou a ser impossível falar em uma unidade, em uma "essência", que caracterizaria cada ser humano. A singularidade passou a implicar uma multiplicidade constituinte.

Freud já introduzira a existência de uma alteridade na interioridade. Essa ideia foi radicalizada em Lacan, que mostrou como a constituição de um sujeito psíquico se dá sempre através de um outro. Em seu ensaio "O estágio do espelho como formador da função do eu" (1936), ele afirma ser preciso compreender o estágio do espelho "como uma identificação [...] ou seja, a transformação produzida no sujeito, quando ele assume uma imagem" (Lacan, 1966 [1936], p. 94).

 

Um Ney Matogrosso freudiano

 

Em "A interpretação dos sonhos" (1900), no capítulo "Psicologia dos processos oníricos", quando procura entender o que move as pessoas quando esquecem seus sonhos, Freud nos dá o exemplo de um fragmento suprimido de um sonho seu que, ao ser lembrado, levou a uma nova interpretação. O fragmento é o seguinte: "Referindo-me a um livro de Schiller, dito 'It is from...', mas, dando-me conta de meu erro, retifico imediatamente 'It is by...' O jovem comenta então com seu irmão: "Ele o disse bem" (Freud, 2014 [1900]). Esse fragmento é relacionado por Freud com a lembrança de um evento que ocorrera quando tinha 19 anos, durante sua primeira viagem à Inglaterra. Estava à beira-mar, "dedicado à pesca dos animais marinhos que a maré ia deixando..." quando, no momento em que pegava uma estrela do mar, ouviu uma menina que se aproximara perguntar: "Is it a starfish? Is it alive?". Freud respondeu: "Yes, he is alive". Imediatamente, percebeu seu erro, corrigindo-se. No sonho, seu erro gramatical fora usar o pronome from no lugar de by. Freud justifica essa substituição pela similicadência da palavra from com o adjetivo alemão fromm (‘piedoso'). Ou seja, ocorrera no sonho uma condensação, em uma só palavra, de sentidos diferentes. Freud conclui: o sonho demonstra, "com um exemplo de caráter completamente inofensivo, que coloco o artigo - ou seja, o sexual - em um lugar indevido (Geschlechtswort significa, literalmente, 'palavra de gênero ou de sexo', 'das Geschlechlichte' = o sexual)". Aqui, Freud torna a fala um corpo, a palavra se concretiza como coisa, remetendo apenas a si mesma, deixando de ser indício de uma outra realidade.

O brilhante ensaio de Laplanche a que me referi acima nos mostra como há, em Freud, uma diferença entre o sexual e o sexuado, o que pertence ao "sexo". Citando Laplanche:

 

O sexuado implica mesmo a diferença dos sexos ou a diferença de sexo, que em alemão se diz Unterschied ou ‘diferença'. Há Sexual, por exemplo, nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", ou seja, sobre a teoria do sexual ou do Sexual. (Laplanche, 2015, p. 136)

 

Geschlecht seria o sexo sexuado. Mas, o que interessa a Freud é o Sexual (em alemão, sexual). E o Sexual é o sexual perverso infantil. O Sexual seria exterior e mesmo anterior à diferença dos sexos, "para não dizer, à diferença de gêneros" (Laplanche, 2015). O Sexual é o perverso polimorfo do qual o adulto não quer saber.

Ney Matogrosso sabe de tudo isso. Cito uma fala sua no documentário De gravata e unha vermelha:

 

Eu pensei assim... É uma maneira que eu tenho de contestar. Então eu vou ser uma criatura que jamais viram. Eu não queria ser mulher. Mas eu não estava restrito ao espaço do homem, porque eu criava uma figura tão completamente estranha que podia ser um inseto, podia ser um pássaro, podia ser um, não sei, porque eu usava tudo, eu tinha osso em cima de mim, eu tinha pena em cima de mim, eu tinha bico de passarinho, eu tinha chifre no meio da testa, porque cada dia eu ia "pirando", ia fazendo uma coisa diferente. E quando eu percebia que as pessoas iam ficando chocadas, eu pensava assim, então vocês não viram nada ainda. Agora é que a coisa vai começar. (De gravata, 2014)

 

Em outro momento do documentário, Ney afirma que não podia se restringir a qualquer universo que delimitasse sua imaginação e criatividade, e que a hora em que precisou usar a máscara para escapar da ditadura militar, libertou-se e pôde ser seres fantásticos.

O Sexual freudiano grita e cintila na figura de Ney.

 

Judith Butler, Beatriz Preciado e Letícia Lanz

 

É bem importante a teorização de Judith Butler e de Beatriz Preciado, entre tantos outros teóricos, na denúncia do binarismo de gênero e na desconstrução do identitarismo. Butler vai demolir qualquer identitarismo em sua crítica do feminino no livro Problemas de gênero (2008).

O que vai sendo afirmado é a diferença como instauradora do desejo. Mas, será que a diferença é sempre fálica e associada à falta?

No documentário De gravata e unha vermelha, Letícia Lanz afirma: "Eu digo, daqui a duzentos anos eles vão nos achar uns primitivos, quer dizer, classificar as pessoas em função disso? Do que tem no meio das pernas? Não podia ser outra coisa, o tamanho do nariz, da orelha, ou capacidade, aptidões físicas?".

Evidentemente, não podemos mais desconsiderar quando Butler denuncia as práticas de poder que adéquam as identidades sexuais a partir de um binarismo de gênero como ponto de partida inquestionável. Mas temos de lembrar que a psicanálise também tem como meta desessencializar o ser humano. Ser psicanalista é poder dar conta do que não cabe no ser. Não ser para viver os mil fogos da linguagem, como afirmava Barthes, em O prazer do texto (1987). O que implica em se abrir para as infinitas possibilidades de construir gêneros. A crítica de Butler às oposições binárias de gênero deve ser a da psicanálise. O Sexual é o polimorfo perverso, como nos diz Laplanche (2015).

O desejo não está ligado ao binarismo, mas à ambiguidade, ao múltiplo. Nada mais psicanalítico.

A proposta de Beatriz Preciado, no Manifesto Contrassexual (2014), é criar práticas de resistência, com configurações inovadoras. Uma contradisciplina sexual. A contrassexualidade é também uma teoria que se manifesta fora das oposições binárias: homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/homossexualidade.

 

Finalizando com Nathalie Zaltzman

 

Zaltzman (1999) observa que

 

nos edifícios metapsicológicos de Freud, nenhum lugar, nenhum conceito, nenhuma alusão marcam o lugar do ato sexual na realidade psíquica. Diferentemente das pulsões parciais e das configurações inconscientes que conotam seu trabalho psíquico, nenhuma formulação teórica vem delimitar uma correspondência, uma determinação, uma ponte, um elo entre o ato sexual e a vida psíquica, exceto a teoria, sempre abandonada, apesar de nunca completamente, da neurose atual e do trauma, caracterizadas justamente por uma suspensão do trabalho psíquico. (Zaltzman, 1999, p. 109)

 

Zaltzman fala em uma profunda mudança na economia psíquica, com suspensão das representações separadas, "uma suspensão das clivagens e um engate das contradições" (1999, p. 112). O objeto parcial representa, momentaneamente, toda a entidade psíquica, mas, por um processo de unificação, descrito como anfimixia por Ferenczi,

 

[...] a entidade física e psíquica está delegada, por sua vez, para cada um dos componentes mobilizados [...] Nesta plasticidade, a pulsação sexual estabelece uma concordância entre todos os estratos do desejo e atualiza, simultaneamente, as declinações sucessivas da identidade de gênero. (Zaltzman, 1999, p. 112)

 

Manter uma diferença segura entre um sexo e o sexo oposto demanda um esforço que se afrouxa no ato sexual.

Aqui temos um grande desafio como psicanalistas: a abertura para configurações que questionam uma certa leitura do Complexo de Édipo, a necessidade de nos abrirmos para o contemporâneo naquilo que ele pode nos obrigar a repensar nossos modelos. Sem abandonar o grande eixo de toda psicanálise, que é assumir o conflito como aquilo que nos constitui e a desessencialização como base de nossa prática. 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Miriam Chnaiderman
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Psicanalista e cineasta. Professora do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Autora de vários artigos sobre a relação entre arte e psicanálise publicados em revistas e jornais. Autora de dois livros publicados: Ensaios de Psicanálise e Semiótica (Escuta) e O hiato convexo: literatura e psicanálise (Brasiliense), e um no prelo: Uma psicanálise errante – andanças cinemáticas e reflexões psicanalíticas (Blucher). Mestrado em Semiótica e Psicanálise (PUC-SP). Doutorado em Artes (ECA-USP). Pós-doutorado em Psicopatologia Fundamental - A questão da identidade no mundo contemporâneo. Diretora de 11 curtas-metragens, 2 médias-metragens e 1 longa-metragem, exibidos no Brasil e no exterior, com vários prêmios.

Referências bibliográficas

BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BUTLER, J. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

COSSI, R. K. Corpo em obra: Contribuições para a clínica psicanalítica do transexualismo. São Paulo: nVersos, 2011.

DE GRAVATA e unha vermelha. Direção: Miriam Chnaiderman. Produção: Reinaldo Pinheiro. Elenco: Ney Matogrosso, Rogéria, Laerte e outros. Roteiro: Miriam Chnaiderman. Imovision, 2014. 1 bobina cinematográfica (126 min), son., color.

FINOTTI, I. Laerte Cartunista - Acho possível sair na rua e ser aceita dessa maneira. Folha de S. Paulo, 4 nov. 2010. (Folha Ilustrada).

FREUD, S. (1900). La interpretación de los sueños (segunda parte). In: FREUD, S. Obras completas v. V. 2. ed. Buenos Aires, Amorrortu, 2014.

FREUD, S. (1905). Tres ensayos de teoría sexual. In: FREUD, S. Obras completas v. VII. Buenos Aires, Amorrortu, 2013.

FREUD, S. (1923). El yo y el ello. In: FREUD, S. Obras completas v. XIX. 2. ed. Buenos Aires, Amorrortu, 2014.

LACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966.

LAPLANCHE, J. O gênero, o sexo e o Sexual. In: LAPLANCHE, J. Sexual. A sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre/São Paulo: Dublinense, 2015.

PRECIADO, B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

ZALTZMAN, N. Do sexo oposto. In: CECARELLI, P. (Org.). Diferenças sexuais. São Paulo: Escuta, 1999.

 


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