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Pontes: Gêneros e Psicanálise



Com base em alguns anos de escuta clínica de adultos, adolescentes e crianças de gêneros diversos, e acompanhada de autores que colaboram nas discussões teóricas psicanalíticas sobre essa temática, trago uma breve reflexão sobre algumas das inúmeras pontes possíveis entre gênero e psicanálise propostas neste debate.

Desde os anos 2000, testemunhamos um aumento significativo no número de crianças e adolescentes questionando a identidade de gênero que lhes foi atribuída no nascimento. Entre vários fatores que contribuem para esse fenômeno, a internet desempenhou, e desempenha, um papel fundamental, uma vez que é a principal fonte de informações e vivências iniciais para alguns indivíduos. Esse impacto virtual resultou em um "boom midiático" sobre jovens trans e não conformes, tanto em revistas brasileiras quanto internacionais, além de filmes, séries, documentários, programas de televisão e reality shows.

Temos acompanhado também um aumento expressivo e crescente nas demandas por análise por parte de adolescentes, crianças e suas famílias. Não faz muito tempo, os serviços de atendimento especializado no Brasil lidavam com poucos casos de menores (Foigel et al., 2014). Atualmente, há um fluxo constante de pais angustiados e escolas confusas em busca de apoio e respostas dos psicanalistas. Esses profissionais, por sua vez, enfrentam os efeitos desse movimento, tanto em sua prática clínica quanto no campo teórico.

Seguindo o trilho teórico inaugurado por T. Ayouch, em artigo publicado em 2015 com o conceito de "transidentidades", o autor observou que "uma psicanálise aberta às transidentidades deve ser tanto subjetiva quanto social. Seu objetivo seria situar o sujeito em seu contexto social, histórico e político e abordar o inconsciente a partir do sistema de sexo/gênero" (Ayouch, 2015, p. 8). Mesmo que o conceito ainda seja novo, essa referência é legítima para questionar o que ele representa. Isso, sim, é realmente novo. Novo, porque a interseção entre sexualidade e identidade, hoje, é mais relevante do que no passado, tanto em termos de frequência quanto de intensidade. Não tão novo se pensarmos que Freud, na introdução à segunda edição de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1976 [1905]), expressou o desejo de que, no futuro, as pessoas pudessem viver sua sexualidade de maneira mais livre e satisfatória. De fato, o que era escandaloso e provocava indignação em 1905, incluindo a sexualidade infantil, não nos surpreende mais nos dias de hoje. Considerando as mudanças nos contextos sociais e históricos que ocorreram nos 120 anos desde as primeiras publicações de Freud, é preciso reconhecer que houve grandes mudanças nas escolhas individuais e nas formas pelas quais os desejos são realizados, tanto em relação aos papéis de gênero quanto às configurações familiares e escolhas de parceiros românticos. A observação de Ayouch é valiosa, pois conecta as duas dimensões da questão, enfatizando que fazer parte da cultura não anula a singularidade da subjetividade (Foigel; Mezan, 2023).

Continuando com as ideias fundamentais do artigo que publicamos este ano, dentro desse contexto, uma abordagem significativa para compreender a sexualidade é a teoria da "sedução generalizada" proposta por Jean Laplanche (2015). De acordo com essa teoria, a sexualidade é influenciada, desde o início, por um encontro que é considerado traumático. Por que chamá-lo de traumático? Porque esse encontro é inteiramente assimétrico: o bebê ainda não possui cognição necessária para elaborar ou simbolizar as intensidades transmitidas pelo parceiro adulto, que, além de fornecer carinho e cuidados essenciais à sobrevivência de um ser tão vulnerável, também transmite elementos sexuais de seu próprio inconsciente. Esses "significantes enigmáticos", como Laplanche (2015) os descreve, deixarão impressões duradouras na psique do bebê, servindo como cenários para suas primeiras explorações em busca de satisfação e identificação.

Faço coro com Semiguem (2023), quando, em sua tese com aporte na teoria laplanchiana, coloca sua surpresa com relação ao conceito de Édipo, porque se surpreende no decorrer de sua pesquisa: "[...] ao perceber que uma grande narrativa unificadora e totalizante já não parecia mais abarcar o que tenho encontrado na clínica contemporânea" (Semiguem, 2023). Realmente, também não abarca o que encontro na minha clínica.

Caffé, que já nos provocou com seu artigo "Norma e subversão na psicanálise: reflexões sobre o Édipo" (2018), em outro artigo ressalta que

 

as intensidades (agora chamadas no plural) parecem se referir a um trabalho complexo de construção simbólica, um trabalho ancorado na fronteira sempre indiscernível entre a singularidade e a coletividade dos sujeitos. Os processos em andamento nesses sujeitos, embora baseados em identificações, sempre ultrapassam o campo delas. (Caffé, 2021)

 

Enquanto muitos colegas concordariam que a sexualidade desempenha um papel decisivo na formação da identidade do sujeito, muitos também expressariam dúvidas quanto à extensão e solidez de algumas teses caras a Freud e a alguns de seus sucessores, especialmente aquelas relacionadas aos complexos de Édipo e castração em sua formulação clássica (considerada muito normativa e restritiva). Essas noções podem não ser capazes de dar conta das novas configurações identitárias promovidas pelos processos sociais aos quais nos referimos. Pelo contrário, é necessário reavaliar os pilares que definem a identidade de gênero do sujeito e ouvir aqueles que vêm a nós com demandas nesse sentido, a fim de não os enquadrar em uma perspectiva patológica. Estamos atrasados em relação a disciplinas como sociologia ou teoria política, que têm algo a dizer sobre o assunto. Isso é ainda mais relevante quando se trata de sujeitos em formação, o que, certamente, é o caso de crianças e adolescentes (Foigel; Mezan, 2023).

Mezan, Ayouch, Porchat, Caffé e Semiguem, entre outros, nos ajudam a problematizar, manter viva e avançar a teoria psicanalítica rumo à clínica contemporânea que encontramos hoje.  Não é tarefa simples repensar conceitos fundantes da teoria que aprendemos e com a qual fizemos nossas análises e supervisões dos nossos pacientes. Se, por um lado, vivemos sob a norma binária de gênero, e a teoria psicanalítica nasce sob a mesma ótica, por outro, hoje conseguimos, como analistas cis e safe (Porchat; Santos, 2021), a duras penas, driblar os pontos cegos contratransferenciais normativos e escutar os pacientes que, independentemente de sua idade, nos relatam outras possibilidades de ser. Que podem vir acompanhadas de sofrimento psíquico, ou não. São essas contribuições que nos permitem, no setting analítico, ir além, muito além, de qualquer visão psicopatológica da vivência de gênero.

Por fim, trago Porchat (2021), que, em entrevista para a Revista Percurso, é precisa ao afirmar que: "'transidentidades' é um conceito amplo que engloba travestis, pessoas transexuais que já fizeram a transição, pessoas que desejam fazê-lo, mas ainda não começaram [...]. A frase 'sou trans' tem significados diferentes para cada indivíduo" (Patitucci et al., 2021).

Hoje, com crianças, adolescentes, adultos trans, travestis, não binários, agêneros, ou qualquer outra designação que escolham para se identificar, podemos seguir a mesma premissa: cada pessoa compreende e vive sua expressão de gênero de maneira diferente e singular.


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Maya Espinola Foigel
Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae
Lipsic - Departamento de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Psicóloga e psicanalista com ampla experiência no trabalho com as transidentidades no SUS (Sistema Único de Saúde) e na clínica. Cofundadora do grupo de trabalho Generidades, no Instituto Sedes Sapientiae, e do TRANSITAR - clínica e ensino em questões de diversidade de gênero e sexualidade. Consultoria em empresas e escolas. Mestranda em Psicologia Clínica na PUC- SP.

Referências bibliográficas

AYOUCH, T. Da transexualidade às transidentidades: psicanálise e gêneros plurais. Revista Percurso, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano XXVIII, n. 54, p. 58-70, 2015.

CAFFÉ, M. Norma e subversão na psicanálise: reflexões sobre o Édipo. Revista Percurso, Homenagem a Regina Schnaiderman - raízes e devires, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano XXX, n. 60, 2017. [versão eletrônica].

CAFFÉ, M. Identificação e transidentidade: noções para uma psicanálise intergênero e inter-racial. Revista Percurso, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano XXXIII, n. 66, p. 33-40, 2021. [versão eletrônica].

FOIGEL, M. E. et al. De adultos a crianças: análise retrospectiva e psicanalítica de serviço ambulatorial de população com disforia de gênero - transtorno de identidade de gênero - transexualismo. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 48, n. 4, p. 73-82, 2014.

FOIGEL, M.; MEZAN, R. De la non-conformité à la diversité de genre. Adolescence, Paris, v. 41, n. 2, p. 407-419.

FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Tradução J. Salomão. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. VII.

LAPLANCHE, J. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano. Porto Alegre/São Paulo: Dublinense, 2015.

PATITUCCI, A. C. et al. Identidades trans: desafios para a Psicanálise. Revista Percurso, São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano XXXIII, n. 66, p. 120-142, 2021. [versão eletrônica].

PORCHAT, P.; SANTOS, B. "Are we safe analysts?" Cisgender countertransferential fantasies in the treatment of transgender patients. Psychoanal Rev., v. 108, n. 4, p. 411-431, 2021.

SEMIGUEM, F. S. C. I. O enigma plural do gênero. 2023. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023.

 


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