EDITORIAL



Todo lançamento remete a algum tipo de nascimento. Neste número da revista trama, traçamos alguns paralelos com uma gama bastante diversificada de publicações, tendo em vista a provocação explícita de Pasternak e Orsi (2023), que nos convoca a falar e a pensar ainda mais a Psicanálise enquanto ciência aplicada, assim como a Psicossomática Psicanalítica. Neste ano comemoramos os 100 anos de publicação de "O eu e o id" (1923), obra primorosa de Freud. Assim, neste número, fazemos uma tessitura de fios dos trabalhos apresentados para a construção de pensamentos clínicos e teóricos que proponham um novo corpo e novas maneiras de habitá-lo.

Os trabalhos apresentados, além de fomentar e estimular a cocriação de um outro pensar, possibilitam mostrar os ganhos e feitos da Psicanálise pensando o sujeito enquanto ser individual, social, político e cultural. Em sua autobiografia, O que falta à verdade para ser dita, Mannoni (1990) cita grandes teóricos e, quando menciona Lacan, afirma que ele enxerga que o sujeito se constrói em uma história, o que põe em questão seu ser e seu sexo. 

Sendo assim, nos trabalhos aqui publicados, vemos o quanto o pensamento psicanalítico segue vivo, potente, criativo e atual e como pode ser uma ferramenta importante para a transformação individual, nas diferentes fases da vida, e social, em diferentes épocas de uma cultura, na qual se podem viver diferentes tipos de mal-estar.

Para abrir este número, temos a escrita de Helena Marques, que propõe pensar a sexualidade humana e as questões de gênero ampliando a ideia de corpo, independentemente de gênero. A autora enfatiza o papel relevante da mulher lésbica enquanto ser político nas transformações sociais.

Kadichary Garcia Ivassaki analisa a relação entre o adoecimento e a interconectividade digital, trazendo a ideia de burnout enquanto fenômeno psicossomático. Em seu artigo, explora o sofrimento humano decorrente da relação de cada um com o trabalho e o grande impacto das redes sociais inseridas na lógica neoliberal como contribuição para tal adoecimento.

Marcos de Moura Oliveira traz uma exploração teórica a respeito do caminho da pulsão na constituição psicossomática do ser humano. Para refletir sobre o tema, baseia-se em autores como Freud e Ferenczi e nos apresenta novos conceitos, como "presença psíquica" e "presença corpórea", partindo do esquema de caixa.

Dois artigos abordam a importância da escuta atenta ao paciente como um ser biopsicossocial não apenas pelo psicólogo/psicanalista, mas por outros profissionais de saúde. No primeiro deles, Valquíria Sais escreve sobre a escuta na fisioterapia e o encontro com o paciente que vai além da reabilitação física, pois tanto o profissional quanto o paciente podem apresentar questões psíquicas durante os atendimentos. Para exemplificar, apresenta dois casos clínicos e descreve como foi feita a transição para a psicoterapia psicanalítica. No segundo, em uma exploração teórica sobre a Psicossomática Psicanalítica e a Medicina Narrativa, Livia Chaud Albano propõe pensar na humanização do atendimento médico e na relevância da dimensão psíquica para além do biológico. Ela explica que, na medicina narrativa, a literatura é utilizada como um recurso humanizador durante o acompanhamento do paciente, justamente para pensar em sua biografia.

Nessa mesma linha de pensamento, Cristina Kiyomi Goto Ovadomari destaca a importância da arte em nossa sociedade como ferramenta para a busca de representações, desalienação e autonomia. Ela alega que, através do atravessamento da cultura - no caso, da literatura -, processos secundários podem ocorrer. Ressalta ainda a relevância das primeiras relações para a integração psicossomática.

Glória Heloise Perez aborda o tema da longevidade, propondo uma reflexão sobre o cuidado da família com os idosos dependentes. Ela aponta os conflitos que podem ser gerados nesse momento da vida, em que se inverte a posição de cuidador, agora ocupada pelos filhos, afirmando que a disponibilidade para o cuidado é atravessada pela história de cuidados de cada um durante toda a vida.

Amanda Ribeiro Alves Barbosa e Hilda Rosa Capelão Avoglia apresentam um caso clínico, no qual um adolescente apresenta manifestações somáticas na pele no decorrer da pandemia. As autoras consideram que, embora o conflito psíquico seja inerente à condição humana, o modo como ele se manifesta para cada um é muito particular.

Aline Montezi e Bruna Quintanilha entrevistaram cinco psicoterapeutas para analisar os impactos vividos por elas durante a gestação. Para pensar nas possíveis modificações durante o processo terapêutico, as autoras abordam o tema da transferência e contratransferência na relação terapêutica, concluindo que é preciso ter provisão ambiental para que psicoterapeuta e paciente possam passar juntos pelas mudanças necessárias, para que seja um momento frutífero para ambos.

Na seção Ensaios, Laurent Chiche, médico clínico geral e imunologista, discorre sobre a conferência proferida em maio de 2023, em uma das duas "jornadas de sensibilização" anuais organizadas pelo Instituto de Psicossomática Pierre Marty (IPSO). O autor faz a sua apresentação com base na análise da trajetória de Mme. A., da perspectiva da biologia moderna, procurando ilustrar o que poderia enriquecer a reflexão teórico-clínica da psicossomática.

Neste número, estreamos a seção Quimeras, apresentando textos que entrelaçam psicanálise e literatura, para reforçar a importância desta relação. Entendemos que a literatura sempre ocupou lugar de destaque na psicanálise, afinal, quando falamos de sujeitos e suas histórias, também fazemos literatura. Nesta estreia, contamos com três excelentes trabalhos, de Vivian Evelyn Huszar, Letícia Gonçalves da Silva e Raul França Filho.

Dois desses escritos discorrem sobre breves encontros analíticos, que se encerram por diferentes motivos. Na narrativa de Vivian, percebem-se os indícios do fim da vida do personagem desde o primeiro contato, e o impacto sobre quem está do outro lado, procurando conter suas angústias de morte. O texto fala daquilo que morre, mas também do que nos marca e permanece morando em nós. A crônica de Raul retrata um processo que não se concluiu e, de forma sensível, nos conduz a mergulhar no mundo de pensamentos do analista, mostrando como teoria e prática caminham juntas e os percalços enfrentados durante um processo analítico. 

Em um belíssimo poema inspirado pela escrita de Isildinha Baptista Nogueira sobre o tema do racismo, Letícia reflete sobre o impacto do pacto da branquitude no corpo do negro, que afeta sua forma de sentir pertencimento, na relação com o outro e na vida.

Na seção Monografia, Roberta Fuganti nos leva a pensar, a partir dos questionamentos levantados, se toda mulher quer, realmente, ter um filho. Em sua época, a teoria freudiana apontava a maternidade como saída do complexo de Édipo ou uma saída rumo à condição feminina. A autora questiona como isso pode ser pensado na atualidade, uma vez que, desde a época de Freud, a mulher assumiu outros papéis na sociedade que não apenas o lugar de "mãe", ou seja, este não é o único objeto de seu desejo. Além disso, aborda, inclusive, a infertilidade feminina sem motivo aparente.

Para finalizar, na seção Resenhas, Eloísa Lacerda escreve sobre o livro de Myriam Boubli, Corpo, psiquismo e linguagem: Bebês e crianças com autismo, destacando a contribuição e relevância prática e teórica da obra desta sensível autora para a clínica do autismo, por enriquecer e ampliar os conhecimentos já existentes sobre o tema.

A segunda resenha, feita por Dandara Ferreira, é sobre O sentido da vida, último livro de Contardo Calligaris, escrito antes de seu falecimento. A autora apresenta de forma leve e profunda, assim como o livro, a visão de Calligaris sobre a felicidade e como cada um pode compor o sentido de sua própria vida, experimentando tanto as alegrias como as dores de forma singular. Calligaris não propõe respostas ou receitas prontas para ser feliz, mas fala sobre a riqueza de se ter uma vida interessante, estando presente em todas as situações e desfrutando disso.

Deixamos aqui uma homenagem a Calligaris, que, de forma bela, bem-humorada e profunda, tocou inúmeras pessoas não só em sua vida, mas em sua clínica e com sua literatura. Que possamos levar a fala dele adiante, fazendo escolhas de caminhos, por novas ou velhas rotas, desde que isso nos ajude a transformar nossas vidas em algo interessante! Boa leitura! 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Referências bibliográficas

FREUD, S. (1923). O eu e o id. In: FREUD, S. (1923-1925). O eu e o id, "Autobiografia" e outros textos. Obras completas volume 16. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 13-74.

MANNONNI, M. O que falta à verdade para ser dita. Campinas, SP: Papirus, 1990.

PASTERNAK, N.; ORSI, C. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023.


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