QUIMERAS

O que morremora em nós

Um brevíssimo encontro poético-psicanalítico
Vivian Evelyn Huszar


 Morremos com os que morrem:

Vê, eles partem e nós vamos com eles.

Nascemos com os mortos:

Vê, eles regressam e trazem-nos com eles.

(T. S. Eliot, Quatro Quartetos)

 

 

 1         a pequena voz esofágica

 

o (nosso) primeiro contato se dá por mensagem de texto e ele (me) fala de suas condições e limitações físicas

la    rin     dec    to    mi   sa    do                                                    a difícil pronúncia

agendamos uma primeira conversa para dali a três dias, às 15h; na manhã deste dia, (me) escreve perguntando se poderíamos tentar por Zoom, pois havia sido uma noite difícil

encontro um homem de olhos grandes e inteligentes, sério, magro; tenso. Conta (me conta) dos seus tumores, tratamentos, cirurgia, da remissão; depois o retorno e as metástases. Em dado momento, levanta a camiseta e mostra (me mostra) em seu torso as cicatrizes e os tubos que o alimentam

não come e não bebe (me diz)

(peço) que (me) conte mais de si, esperançosa de poder ouvir a música da sua história viva, não só esse retrato duro, polaroid instantânea de sua doença

um pouco da filha e do filho, mas é uma narrativa que não se alonga

está preparando as coisas práticas, instruindo a mulher em assuntos que, até agora, eram responsabilidade dele; para que ela saiba

já estando para terminar nosso tempo, pergunto se ele quer saber algo de mim, e me dou conta, de repente, que estamos falando de Lacan, justamente esse autor que eu pouco visito, e ele (me) contando que leu Derrida; e estamos (os dois) a certa altura sorrindo

marcamos o (nosso) próximo encontro

 

2       temidos des/encontros

 

nesse meio tempo me assusto; vai ficando claro que encontrá-lo é também (me) encontrar com a (minha) morte; fantasia de morte, velha conhecida que me (re)visita em sonhos em contos em cantos, espantos

finjo que o que temo é não ouvir, que é seu fio de voz que me angustia; a verdade é que soa e ressoa em mim sua voz (me) dizendo da dor e do fim, essa voz grita

evito olhar o buraco nele e tenho notícias de que o buraco, afinal, está em mim

inundada de elementos de morte, como tramar isso tudo e tecer a colcha que vai nos envolver? (tropeço e perco os pontos)

sempre on-line, nossos encontros envelopados e mediados pela tela, há algo de paradoxal aí; porque, de certa forma, é essa distância que nos aproxima: posso ouvi-lo porque sua (não) voz fala dentro do meu ouvido

enquanto (ele) não vem, pergunto o que eu não escuto, o que é inaudível para e em mim: se não há melodia em sua fala, é apenas ritmo, o ar-brisa que sai e é interrompido pelos lábios, moldado pela língua; o que seria isso? Jazz, sugere Aline

serão muitos imprevistos e sessões desmarcadas até conseguirmos estar novamente frente a frente, ao pé do ouvido, em nosso segundo encontro

segundo encontro: seu trabalho e sua arte; a culpa por ter sido fumante; a ideia de que readoeceu por conta do desencanto com seu país; a percepção da tristeza da mãe, a mais difícil de olhar

(podemos falar da sua morte?)

passa um link para que eu veja algumas obras suas, não consigo acessar: página não encontrada

 

3         a pergunta ou o que morre em nós

 

terceira sessão:  relatos de horror

está muito, muito magro

tudo dói, falar dói, respirar dói, só dormir, quando consegue, não dói

quase morre afogado no próprio sangue, que, hemorrágico, jorra da fístula aberta para dentro dos pulmões; não morre porque está no hospital

não morre porque é prontamente atendido

não morre porque o médico está lá

não morre por quê?

pequeno e efêmero alívio no sono, só

tudo dói em mim também, diante deste real intransponível e da minha absoluta impotência diante dele

(e ouso intimamente desejar a morte)

escutar dói, escrever dói

está muito fraco e, já havia avisado, talvez não aguente falar muito

ele está cansado, mas quer fazer uma pergunta

já vamos interromper a sessão, mas ele quer me fazer uma pergunta

(a pergunta lateja antes de se apresentar)

talvez tenha medo

talvez eu tenha medo, como tive medo no parto do meu primeiro filho: a obscenebela verdade do encontro das duas pontas da vida

"diante disso tudo, o que você acha?"

poucos minutos depois de encerrarmos ele envia a mensagem sobre a pitangueira


elemecontaquequandoconstruiramacasaemquemoramplantaramumapitangueiraqueagoraestálindaatétorta

detantapitangamaduravermelhoescuroeelenãopodecomernenhumanenhumanenhumanenhuma

nem        uma

 

foi nosso último encontro, ainda trocamos algumas mensagens e

eu receberia dali a duas semanas a notícia de sua morte.

 

4       a pitangueira ou o que mora em nós

 

Também há uma pitangueira no meu jardim.

Não, não fui eu que plantei, já estava aqui quando cheguei. Ela está encostada ao muro, lá no fundo, no final do meu quintal.

Quando é inverno, ela fica toda vermelha, suas folhas, não seus frutos; esses vêm depois e fazem contraste com as folhas que, agora, estão verdes.

Pelas ruas da cidade também vemos muitas delas e, no tempo das frutas maduras, mancham as calçadas de um vermelho vivo, parecendo sangue.

 

 

Para Aline e Roberta, que o escutaram na minha voz

 


voltar ao topo voltar ao sumário
ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
voltar ao sumário
Autor(es)
• Vivian Evelyn Huszar
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

 Psicóloga formada pelo IPUSP. Especialização em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae.


voltar ao sumário
Copyright, 2019. trama, Revista de Psicossomática Psicanalítica