ARTIGOS

Sujeitos feministas e a mulher lésbica: Subverter, transformar e ressignificar


Feminist subjects and the lesbian woman: Subverting, transforming, and resignifying
Helena Marques

RESUMO
A complexidade da sexualidade humana supera o encontro dos genitais na representação do coito. Está nas camadas da vivência humana, em suas incompletudes e desejos; assim, não existe linearidade entre corpo e gênero. Este artigo pretende olhar a mulher lésbica como um ser político, atravessado pelas diversas dimensões – sociais, culturais, éticas, psíquicas, econômicas, entre outras –, em um país colonial afetado pela primazia do patriarcado. O desejo e o amor entre mulheres são fundamentalmente entrelaçados por questões do feminismo e das lutas dos movimentos sociais, historicamente construídas. O sujeito feminista transcende o olhar original homem-mulher; avança para a consciência de gênero, raça e classe social, avança para a ruptura da bolha do reformismo feminista, elitista, hétero e branco, caminha lentamente para o antissexismo, implicado no posicionamento político comprometido com causas maiores, como violência doméstica, feminicídio, violência contra mulheres trans. Assim, o lesbianismo, em suas diferentes manifestações, rompe com a sexualidade definida binariamente na relação entre sexo biológico e gênero, vai além na busca do lugar da mulher lésbica na contemporaneidade, passando pela discussão da invisibilidade e da premência de políticas públicas que atendam demandas excluídas ou na sombra da heterossexualidade normativa. Questionar criticamente o que é gênero e sexualidade talvez seja o caminho para se pensar na mulher lésbica como um ser político, engajado nas transformações sociais.

Palavras-chave: Contemporaneidade, Feminismo, Gênero, Mulher Lésbica, Sexualidade.

ABSTRACT
The complexity of human sexuality goes beyond the meeting of genitals in the representation of coitus. It lies in the layers of human experience, in its incompleteness and desires; thus, there is no linearity between body and gender. This article intends to look at the lesbian woman as a political being, crossed by various dimensions – social, cultural, ethical, psychic, economic, among others –, in a colonial country affected by the primacy of patriarchy. Desire and love among women are fundamentally intertwined by issues of feminism and the struggles of social movements, historically constructed. The feminist subject transcends the original male-female view; it moves towards gender, race and social class consciousness, it moves towards breaking the bubble of feminist, elitist, hetero and white reformism, it slowly walks towards antisexism, implied in political positioning committed to larger causes, such as domestic violence, feminicide, violence against trans women. Thus, lesbianism, in its different manifestations, breaks with the binary defined sexuality in the relationship between biological sex and gender, goes beyond in the search for the place of lesbian women in contemporaneity, passing through the discussion of invisibility and the urgency of public policies that meet excluded demands or in the shadow of normative heterosexuality. Critically questioning what is gender and sexuality may be the way to think of the lesbian woman as a political being, engaged in social transformations.


Keywords: Contemporaneity, Feminism, Gender, Lesbian Woman, Sexuality.


 

Do binarismo às construções de gênero: a mulher lésbica no centro do feminismo

"A definição de gênero a partir do modelo heterocentrado, fálico e patriarcal, reduz sujeitos a homens e mulheres. Empobrece as diversas manifestações de ser e existir no mundo." 

 Helena Marques

 

A mulher lésbica, no centro do feminismo, está implicada nas transformações sociais, atravessada pelo real, abrindo caminhos para construções inéditas de ser no mundo a partir de outras experiências corpóreas.

Um ser é constituído na relação de desejo com outro desde o nascimento. Gênero é aquilo que se movimenta e ultrapassa a contingência do sexo biológico. É afetado pelo tempo histórico, embaralhando as cartas marcadas pelo bebê humano, definido fenotipicamente. A complexidade da sexualidade humana supera o encontro dos genitais na representação do coito. Está nas camadas da vivência humana, em suas incompletudes e desejos; assim, não existe linearidade entre corpo e gênero.

A construção social de gênero ultrapassa a primazia do falo. Dialoga com a experiência humana, independentemente do sexo biológico e da orientação sexual. É constituída política e culturalmente, atravessada pelo desejo, produzindo diversas formas de subjetivação. O gênero transmuta e faz parte da existência cotidiana. Atravessa contingências do real na relação com o outro e suas imprevisibilidades. 

Para Butler (2021), gêneros são atos performáticos e não encontram correspondência em identidades definidas em matrizes sociais heteronormativas. Não há como limitar a identidade de gênero em duas categorias binárias, homem e mulher. Gênero é algo que performa; está na repetição da ação, da linguagem, das diversas maneiras de se colocar no mundo, constituindo múltiplas subjetividades nas lacunas e sobreposições entre o definido como homem e mulher. A autora defende que o corpo não é um ser e, como é constituído politicamente, performa ganhando sentido nas vivências. 

Ainda para Butler (2021), sexo e gênero não estão fundados na identidade, e a identidade não define a existência, tampouco é definida por ela. O sujeito vive em constante movimento, se faz e se desfaz, descolando e desorganizando a heterossexualidade compulsória.

Assim, definir a existência da mulher lésbica é reconhecer sua singularidade. A mulher lésbica não é só seu gênero, ou seu sexo, ou sua identidade; é o construto de uma raça, idade, família de origem, local de nascimento, cultura, religião. E definir lesbianismo é despatologizar, ir além dos manuais de Psiquiatria e, fundamentalmente, reconhecer a existência do diverso. É olhar o sujeito como um ser político, implicado nas lutas e transformações.

 

"O caminho transformador dos feminismos é ação política libertadora frente às tensões e contradições dos discursos masculinos embaralhados e cristalizados em verdades naturalizadas, universalizados sistemicamente." Helena Marques 

 

O atual momento histórico que o Brasil atravessa é marcado por semelhanças com os anos 1930, período entre a primeira e segunda guerras mundiais, em que a catástrofe se impõe. Por um lado, há o excesso: perdas cotidianas de vidas, de empregos e, sobretudo, a luta por uma sobrevivência digna por grande parte dos brasileiros. Por outro, enfrenta-se a ausência de políticas públicas embasadas na ciência de maneira coerente e articulada. Na área da ciência, o país pouco avançou nos últimos anos, devido à falta de investimentos de um governo dividido entre imperativos da saúde e da educação.

Assistimos ao crescimento de um racismo sistêmico e estrutural, ao desmonte do SUS - Sistema Único de Saúde - e do SUAS - Sistema Único da Assistência Social, ou seja, das redes de políticas públicas primordiais, deixando a população em situação de alta vulnerabilidade. Assistimos à queimada das matas, à destruição das florestas e dos cerrados, à morte dos povos originais, ao fomento crescente do preconceito contra o diverso, o preto, o índio, os LGBTQIA+, as mulheres, e, em contrapartida, a assunção de um discurso moralista que prega o retorno a estados mais arcaicos da existência humana, quem sabe um retrocesso ao mundo medieval e à bestialidade, em que mulheres eram queimadas vivas por expressarem seus desejos.  

Nesse contexto, após os últimos quatro anos catastróficos de um desgoverno em que o atraso se deu em todos os âmbitos, sobretudo social, político e cultural, a mulher, em particular a mulher lésbica, remonta a lutas históricas do feminismo, que precedem a luta por direitos políticos: o direito à existência. 

Partimos da premissa de que as questões dos "feminismos", em particular as situações de violência contra a mulher, se agravaram nos últimos anos. Os crimes hediondos e as violências contra mulheres assolaram e levaram as mulheres lésbicas à invisibilidade. Os crimes de estupro, violência física, verbal e psicológica são usados perversamente como forma de castigar e "retificar" algo considerado errado, fora da lei, fora da ordem social. Em 2017, de um total de 2.379 casos de estupros registrados (SINAN - Ministério da Saúde), em média 6 lésbicas foram estupradas por dia. Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez.

 

Feminismos

            "Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra."

Clarice Lispector

 

A ideia do feminismo na contemporaneidade diz respeito não apenas a uma mudança de comportamento e de atitudes na vida cotidiana, mas a uma teoria política. Diz respeito aos feminismos, no plural, evidenciando a pluralidade dessa questão. Ao falar em feminismo, camadas e recortes diversos se sobrepõem. Falamos de feminismo, de mulheres negras, da mulher trans, da mulher lésbica, da mulher periférica, com suas especificidades e singularidades. "Os feminismos são, portanto, não apenas uma prática social, mas uma teoria política" (Garcia, 2011, p. 13).

A primeira onda do feminismo ocorre a partir do final do século XVIII, atravessando o século XIX e adentrando o século XX, caracterizada pelas ações políticas das sufragistas na luta pelo direito ao voto universal e pelo movimento político das classes trabalhadoras. A segunda onda tem início após a Segunda Guerra Mundial, fortemente influenciada pelo pensamento de Simone de Beauvoir, cuja obra O segundo sexo (1960) revoluciona o universo feminino da época. A célebre frase "não se nasce mulher, torna-se" (Beauvoir, 1960, p. 9) recusa a ideia de uma natureza feminina, apresentando o tornar-se mulher como um processo de construção, da infância à velhice.

Beauvoir (1960) critica o lugar da mulher como objeto erótico, naturalmente dócil, subjugada a um estado de inferioridade. A passividade e a domesticidade da natureza feminina são colocadas em xeque, provocando a reflexão da igualdade na diferença e a emancipação da mulher. Três aspectos são fortemente questionados: o casamento, a maternidade e o aborto, provocando indignação e revolta na sociedade burguesa da época.

Nas décadas seguintes à publicação da obra de Beauvoir, as lutas por direitos civis marcaram o ativismo feminista. O movimento agregou mulheres na França e no mundo inteiro, em manifestações e enfrentamentos políticos. O casamento passou a ser visto como uma instituição burguesa, tão repugnante quanto a prostituição. A maternidade deixou de ser considerada uma condição feminina, e o aborto passou a ser um direito.

O direito ao aborto, ao divórcio, à igualdade e liberdade sexuais balançam o mundo ocidental. Na França, em maio de 1968, uma grande onda de protestos, iniciada com manifestações estudantis, junta-se aos protestos liderados por operários, promovendo uma greve geral na Europa, com a participação de cerca de 9 milhões de pessoas.

Em 1966, as manifestações antirracistas nos Estados Unidos transformaram o cenário sociocultural estadunidense, trazendo à tona uma série de reivindicações. A expressão Black Power, criada por Stokley Carmichael (1941-1998), pretende recuperar as raízes africanas, defendendo o uso do cabelo natural como forma de enfrentar a estética eurocêntrica imposta pela sociedade estadunidense.

No final do século XX, a compreensão do feminismo parte da relação entre falo e poder, determinante na associação entre gênero e sexo, biologicamente constituídos, para questões mais amplas, como o sexismo e a consciência de classe. Situações cotidianas de microviolência, micromachismo e desqualificação da mulher em todas as partes do mundo, inclusive no Brasil, despertam os feminismos como consciência crítica, para além de ideias de liberdade e igualdade no trabalho e na vida sexual.

Para compreender o feminismo, é preciso, necessariamente, aprofundar-se sobre o sexismo baseado na desigualdade e no poder centrado nas narrativas de uma sociedade homogeneamente fálica. As diferenças biológicas, de gênero ou de orientação sexual são legítimas e singulares aos sujeitos; contudo, desigualdades impostas sociocultural e economicamente trazem a centralidade do poder do falo.

De acordo com Bell Hooks (2020), autora, professora, teórica feminista, artista e ativista antirracista estadunidense, o movimento feminista, inicialmente representado por uma parcela de mulheres brancas e heterossexuais, não expressava a visibilidade da mulher negra e/ou lésbica. Baseado no sexismo, reproduzia o modelo centralizado no falo.

A ruptura da bolha do reformismo feminista elitista, heterossexual e branco caminha lentamente para o antissexismo, que implica um posicionamento político comprometido com causas maiores, como a violência doméstica, o feminicídio ou a violência contra mulheres trans.

A tomada de consciência das desigualdades sociais, raciais e de gênero trata da desconstrução da visão universal de ser humano na dualidade homem-mulher, criando demandas de políticas públicas diversas, com o objetivo de atender especificidades das mulheres, independentemente de orientação sexual ou gênero.

Outra questão polêmica é o aborto. A delicadeza desse tema passa, necessariamente, por esferas religiosas, pessoais e culturais. No entanto, por se tratar de um problema de saúde pública, um indivíduo desfavorável ao aborto do ponto de vista pessoal pode, ainda assim, apoiar essa questão, por entender a complexidade desse assunto no âmbito da saúde pública e coletiva, assim como dos direitos reprodutivos da mulher.

 

A potência da mulher periférica

 

"As mulheres vão garantir a democracia no Brasil."

 Maria Amélia Teles 

 

No Brasil, o movimento feminista cresceu potencialmente nas últimas quatro décadas, impulsionado pelos movimentos sociais e impulsionando-os também. Movimentos por melhores condições de saúde, moradia e educação, lutas raciais, feministas, GLS - gays, lésbicas e simpatizantes, assim chamados na década de 1980 - trouxeram à cena sujeitos excluídos por uma sociedade estruturalmente centrada no falo, no pensamento hegemônico classista e branco, duramente perpetuado por anos e anos de herança colonial.

Para Teles (2017), no final da década de 1970 e durante os anos 1980, as reivindicações das trabalhadoras da periferia de São Paulo, mobilizadas pelo custo de vida, pela pobreza e, sobretudo, pela necessidade de creches para seus filhos, dão início a ações organizadas em clubes de mães, igrejas ou associações de bairro. Questões acerca da sexualidade, prazer, lesbianismo e aborto não eram pautadas; ao contrário, eram tratadas como assuntos "sexistas", que dividiam o movimento. Vivia-se em um país traumatizado pela ditadura militar, em que ações coletivas organizadas aconteciam timidamente, nos quintais das casas ou nos salões de igrejas na periferia, quase sempre apoiadas por padres implicados nos problemas sociais.

Nos anos 1980 e 1990, o fluxo migratório da população do campo para a cidade acirrou situações de miséria e pobreza extrema. O crescimento desordenado das favelas contracenava com a falta de políticas públicas para lidar com o agravamento das péssimas condições de vida da população. Alguns anos mais tarde, a organização miúda em coletivos feministas rompe com as pautas tradicionais sobre custo de vida, pobreza e necessidade de creches e avança para a discussão sobre a identidade feminina e o direito sobre seus corpos.

 

Numa dessas reuniões, num clube de mães, no conjunto Lar Nacional, mulheres começaram a falar da falta de liberdade. "Mas que liberdade a mulher tem que ter?" perguntou uma delas... "Não é liberdade de ser igual a esse homem que anda pelos bares, bebendo e mexendo com todo rabo de saia que vê pela frente. Nós queremos uma liberdade diferente, uma liberdade que a gente possa viver sem preconceito de ser mulher". (Teles, 2017, p. 87)

 

A conquista de postos de trabalho no cotidiano, delegando o cuidado dos filhos a avós, vizinhas e cuidadoras; a subsistência e a sobrevivência alimentar em trabalhos mal remunerados, quase sempre domésticos, desnudam as variáveis da opressão sistemicamente constituída, trazendo à tona a invisibilidade da mulher periférica, preta, pobre e oprimida. 

Questões circunscritas ao universo familiar e à busca por melhores condições de vida rompem o silêncio sobre temas como violência doméstica, alcoolismo, estupro conjugal e abuso infantil. Corpos objetificados, pedaços de carne, como descreve a letra da música "A carne", do compositor e cantor carioca Seu Jorge - "A carne mais barata do mercado é a carne negra" -, disponíveis para serem usados, penetrados, fetichizados, tornam-se pautas feministas, ampliando e problematizando outras questões, como orientação sexual, gênero, transexualidade, prazer e aborto.  

 

Psicanálise e a plasticidade da sexualidade humana

 

"Sexualidade é a energia psíquica que comunica o mundo de dentro com o mundo de fora... pelo olhar, pela boca, pela pele, pelos genitais." 

Lacan 

 

Para que serve um corpo?

Sob o ponto de vista anatomofisiológico, para se sustentar, se movimentar e se manter em pé. O homem, desde a fase embrionária, passa por outras fases do desenvolvimento: sensório, motor, esquelético, muscular, hormonal, até que o corpo se transforma na vida adulta. No entanto, a anatomia desenvolve-se atravessada pelo desejo humano: ossos, músculos e, sobretudo, a pele - órgão de relação com o exterior - são veículos para a satisfação de desejos e necessidades na relação com o mundo.

O corpo vivencia experiências de excitação, dor, ódio, prazer, amor, deixando marcas que falam por meio de cicatrizes e que traduzem histórias de vida, assim como a própria vivência erógena do sujeito. São caminhos circulantes da pulsão, construídos nas relações do ser humano com o outro.  

Freud (1996a) desenvolve a teoria de que a estrutura do aparelho psíquico surge como uma instância não correspondente à anatomia cerebral. Ou seja, dissocia o biológico e o psíquico, criando outra concepção, que sustenta a materialidade da estrutura da psique. O aparelho psíquico é algo que não se vê, mas que define o comportamento humano.

Freud (1996a) identificou os sintomas conversivos apresentados por pacientes mulheres como quadros histéricos, em que marcas traumáticas inconscientes são representadas no corpo e nos sonhos. De suas pesquisas nasce a Psicanálise, no início do século XX, rompendo com os princípios científicos da época, dando lugar à escuta e à cura pela palavra. Inaugura-se a visão do homem como um ser com desejos recalcados e pulsantes pela força do inconsciente, na busca de prazer.

Em seus estudos, Freud (1996c) afirma que a dicotomia entre presença e falta corresponde à valorização fálica máxima, tendo em contrapartida a desvalorização do que falta, o castrado. As representações de presença e falta definem a organização sexual dos sujeitos, a estruturação da vida psíquica e as relações humanas. Para os meninos, a estruturação psíquica decorre de como se realiza a saída do Complexo de Édipo, de como se dá a resolução da perda do objeto amoroso, a mãe, e na rivalidade com o pai. Para as meninas, ao contrário, essa estruturação ocorre quando ela entra no Complexo de Édipo, em sua percepção como ser castrado e na rivalidade com a mãe, responsável pela falta (Freud, 1996b).

Contudo, a organização psíquica ocorre, fundamentalmente, no cuidado parental, na relação com o Outro nos processos identificatórios, lugar em que a sexualidade se define: do menino com a mãe, do menino com o pai, assim como da menina com a mãe e da menina com o pai, ou com seus cuidadores. Portanto, a constituição psíquica não é um ato mecânico, é um ato de afeto; a matriz afetiva é definidora para a resolução do Complexo de Édipo.

A função materna (cuidador) é primordial na constituição egoica do sujeito. O Outro cuida, nutre, envolve, acalenta. O Outro primordial, estruturante da linguagem libidinal do corpo erógeno do bebê, se dá na relação, definindo as representações de afeto, constituindo o eu narcísico. O Outro implica a triangulação edípica, marcador edificante da formação da personalidade psicológica, constituída processualmente ao longo da vida.

Freud (1914) afirma que o investimento libidinal no Eu, como proteção de vida, é a chave para a compreensão do conceito de narcisismo como preservação do ego, fonte inesgotável de libido. A libido vívida e circulante, pulsante e inesgotável, dirige-se ao objeto amoroso, definindo as escolhas objetais e os caminhos para as escolhas dos parceiros.

Na teorização sobre a sexualidade, Freud (1996c) define o valor do pênis. Na fase fálica, entre 3 e 5 anos, ocorre o estágio de desenvolvimento em que o menino ou a menina descobre a diferença sexual. Nesse estágio, importantes consequências psíquicas marcam, futuramente, as escolhas objetais amorosas.

Ao retomar Freud, Lacan (1998) avança o conceito de pulsão e coloca o homem no seio de sua incompletude, complexificando o conceito de sexualidade, quebrando a ótica linear. Em outras palavras, a libido é fonte inesgotável, brota como energia sexual, escapa comunicando o mundo de dentro com o mundo de fora via pele, olhos, genitais.  

Em Lacan (1998), a concepção de sexualidade e gênero é ampliada. O binarismo inicial freudiano - corpo-mente, psico-soma, ativo-passivo, sádico-masoquista, homem-mulher - é traduzido pela linguagem, e a linguagem age como representante do inconsciente, atravessado pelo real. O inconsciente estrutura-se na linguagem, e, assim, as dimensões do simbólico, do imaginário e do real rompem com o binarismo de que um corpo, geneticamente constituído como masculino ou feminino, tenha uma orientação heterossexual correspondente. O pênis corresponde ao órgão genital, e o falo, às funções simbólicas. O falo, anatomicamente, representa o poder, o desejo atravessado pelo real. 


 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Helena Marques
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae


Assistente Social, Psicóloga e Psicanalista. Terapeuta de família e casais pela PUC SP. Sexóloga pela FMUSP. Especialista em Psicossomática Psicanalítica pelo Instituto Sedes Sapientiae. Membro do departamento de psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail:helenaamarquespsi@gmail.com

Notas

Referências bibliográficas
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1960.

BUTLER, J. Problemas de gênero, feminismo e subversão da identidade. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XIV.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. XXI.

FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996a. 

FREUD, S. A dissolução do Complexo de Édipo. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

FREUD, S. A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996c.

FREUD, S. Sexualidade feminina. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. 

GARCIA, C. C. Breve história do feminismo. São Paulo: Claridade, 2011.

HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 14. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.

LACAN, J. (1964). O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

TELES, M. A. A. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2017.

 

 


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