ARTIGOS

Redes sociais e a instrumentalização da produtividade: O Burnout não tira férias


Socia media and the instrumentalization of productivity: Burnout doesn´t take vacations
Kadichary Garcia Ivassaki*

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo suscitar reflexões acerca do cenário atual no que concerne à relação entre adoecimento e interconectividade digital, sugerindo-se que o burnout pode ser uma consequência psicossomática direta desse contexto. Iniciando com as mudanças trazidas pelo neoliberalismo a partir da década de 1970, percorre-se o tema do trabalho e a exploração do sofrimento e, finalmente, chega-se aos dias atuais, em que temos as redes sociais com o potencial de fomentar a lógica neoliberal de que as possibilidades são infinitas, levando o sujeito ao adoecimento.

Palavras-chave: Redes sociais, Neoliberalismo, Burnout.

ABSTRACT
The purpose of this study is to raise reflections on the current scenario regarding the relationship between psychological suffering and digital interconnectivity, suggesting that burnout may be a direct psychosomatic consequence of this context. It starts with the changes brought about by neoliberalism from the 1970s onwards, goes through the theme of work and the exploitation of suffering and finally arrives at the present day where we have social networks with the potential to foster the neoliberal logic that possibilities are infinite, leading the subject to illness.


Keywords: Social media, Neoliberalism, Burnout.


 

Neoliberalismo e o sujeito neoliberal

 

Entre as décadas de 1920 e 1930, impactantes eventos ocorreram ao redor do planeta: recente fim da Primeira Guerra Mundial, no ano de 1918; quebra da bolsa de Wall Street, em 1929, e o período de recessão econômica conhecido como Grande Depressão; surgimento de movimentos fascistas na Itália, em 1922, e na Alemanha, em 1933; e início da Segunda Guerra Mundial, em 1939.  

Diz-se que momentos de crise são decisivos, na medida em que se espera uma mudança no estado das coisas. Nesse contexto histórico, as bases do neoliberalismo começaram a ser delineadas como uma solução para combater a instabilidade do período entre guerras.

Ideais de coletivismo e socialismo espalhavam-se, assombrando estudiosos que defendiam o liberalismo vigente à época. Em 1938, na cidade de Paris, um grupo de intelectuais formado por filósofos, jornalistas, sociólogos e economistas reuniu-se no que ficou conhecido como Colóquio de Walter Lippmann, em que foi debatida a crescente derrocada do liberalismo frente à ascensão de sistemas fascistas e comunistas. Esse encontro é considerado um marco na história do neoliberalismo. Em meados da década de 1970, as ideias neoliberais ganharam status de teoria e começaram a ser aplicadas amplamente mundo afora (Nofal, 2023).

Em âmbito econômico, o liberalismo clássico pregava o livre mercado: a desestatização, a concorrência e a eficiência. O que ficou pacificado com as crises socioeconômicas daqueles anos foi que o liberalismo baseado em uma economia autorregulada não ocorria de maneira natural e espontânea, isto é, a coordenação dos mercados necessitava de intervenção estatal direta para regulamentar e configurar as operações e gerir conflitos sociais.

A inovação do neoliberalismo é que ele traça algo para além de um sistema econômico; inaugura também uma frente psíquica. Nofal elucida que não se trata mais de uma relação Estado-mercado que determina o tamanho do Estado, mas de "reconfigurar o seu papel e as suas práticas para que a lógica do mercado penetre ativamente em todos os aspectos da vida" (Nofal, 2023, p. 582; tradução própria).

Logo, o constructo de neoliberalismo abrange um modelo social que inclui os campos do trabalho, da linguagem e do desejo. Há uma articulação de várias instâncias que desemboca em uma vida gerida e calculada como se fosse uma empresa: voltada à performance.

Entra em cena a figura do sujeito neoliberal. O ideário incutido pelo modelo é que o indivíduo se converteu em "capital" e, por isso, necessita valorizar-se constantemente; todas as suas atividades precisam ser vistas como uma linha de produção e de investimento.

A ordem do mercado é dar ao sujeito um palco para que realize seus desejos, participando de um jogo de concorrência de todos contra todos, inclusive do sujeito contra si mesmo. Nesse embate, sobram expectativas, descolamento da realidade e super-responsabilização pelos fracassos, mas a promessa de otimização e perfectibilidade seduz os indivíduos a continuar na dinâmica. O modelo neoliberal instrumentalizou os sujeitos para "não se verem mais como portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de performance, otimizadores de marcadores não problematizadores" (Safatle; Da Silva Junior; Dunker, 2021, p. 25).

 

O trabalho, a exploração do sofrimento e o sujeito como empreendedor de si mesmo

 

Freud (2020 [1930]) preconizou que a condição primordial para se viver em uma sociedade organizada foi o sujeito deixar de lado seus instintos de destruição, porque há uma incompatibilidade estruturante entre a natureza do sujeito e a cultura. A questão norteadora da vida de um indivíduo passa a ter, então, um caráter de economia libidinal regida pelo princípio de prazer: "Tudo irá depender de quanta satisfação real ele pode esperar do mundo exterior e até que ponto ele age para se tornar independente dele; e também, por fim, de quanta força ele acredita dispor, para modificá-lo de acordo com seus desejos" (Freud, 2020 [1930], p. 330). Assim, uma felicidade plena nunca seria alcançável, daí vem o mal-estar que se instala.

O autor enumera algumas das tentativas que o homem realiza na busca por uma dita felicidade e realização: religião, arte, amor, entre outros.

O trabalho, segundo ele, não figura, por excelência, como um sucedâneo dessa busca, porque é decorrente de uma necessidade e pouco apreciado pelas pessoas. Somente quando o trabalho é escolhido livremente é que há esse potencial, pois permite que inclinações e pulsões presentes no sujeito sejam escoadas. O trabalho também aparece como positivo quando traz ao homem notícias da realidade ao inseri-lo na comunidade humana, propiciando que alguns aspectos libidinais, narcísicos, agressivos e até eróticos sejam alocados na sua atividade profissional.

Se antes tivemos que abdicar um tanto de realização em prol de viver em sociedade, conforme encontramos na célebre frase freudiana "O ser humano de cultura trocou um tanto da possibilidade de felicidade por um tanto de segurança" (Freud, 2020 [1930], p. 368), agora, com a bandeira neoliberal, o que se vende é que não precisamos abrir mão de nada, podemos ter tudo, podemos ser tudo. Isso é tentador: vende, engaja e adoece.

A exploração do sofrimento é encontrada em Dejours (2015), quando ele narra uma pesquisa realizada, na década de 1980, com telefonistas, que constatou a relação entre tensão nervosa e produtividade.

As funcionárias eram submetidas a situações de controle e hierarquia extremas, que causavam sofrimento. O seguinte ciclo se iniciava: i) uma agressividade era demonstrada pelas funcionárias, ii) que gerava uma autoagressão - por não encontrar outra saída, iii) que se transformava em culpa e iv) consequente aumento de ritmo de trabalho na tentativa de expiar esse sentimento. Esse circuito disciplinar é extremamente danoso psiquicamente, uma vez que esvazia o desejo do sujeito. Assim, esse mecanismo explora o sofrimento psíquico ao nível de "longe de ser um epifenômeno, é o próprio instrumento para obtenção do trabalho. O trabalho não causa o sofrimento, é o sofrimento que produz o trabalho" (Dejours, 2015, p. 134).

Dejours (2015) esclarece que não é o sofrimento em si que é explorado pela organização do trabalho, mas os mecanismos de defesa utilizados contra esse sofrimento. Ademais, fala-se que um empregado exausto é mais facilmente alienado pela organização de trabalho. Pode-se chegar a um nível extremo, em que há sujeição total do corpo de um indivíduo a serviço da instituição na qual trabalha, até ele se sentir habitado por um estranho.  

Han (2017) traz o que ele chama de sociedade do esgotamento, que, em contraponto à sociedade freudiana - segundo ele, repressiva e impositiva -, agora é uma sociedade baseada em desempenho. Essa lógica do desempenho consiste em uma busca interminável por uma meta, meta essa que não se esgota e, por isso, fala de um impossível. Agora, o trabalhador atua com a finalidade de encontrar no seu ofício um prazer, talvez a qualquer custo, balizado pelos valores de liberdade e boa vontade, agindo como um "empreendedor de si mesmo" - coadunando com o aventado pelo neoliberalismo.

Sob tal perspectiva reside a armadilha contemporânea: se eu busco desenfreadamente uma liberdade, prescindindo do outro para tal objetivo, instala-se o que Han chama de "crise de gratificação", posto que uma gratificação pressupõe o olhar e o reconhecimento de um outro. Surge a dúvida: quem me vê, quem me diz que sou bom e me recompensa?  

Outra consequência dessa mudança paradigmática é que, junto da ideia tão valorizada de desregulamentação, vêm o esfacelamento das instituições e a derrubada de contornos antes muito claros. Há um imperativo que se instala com o neoliberalismo que coage o sujeito a performar, a ter o mais alto desempenho sempre, forçando-o a produzir ininterruptamente. Atualmente, não há mais necessidade de um chefe que cobre metas a serem alcançadas.

Converge-se para o seguinte cenário: se eu sou empreendedor de mim mesmo, compito, em última instância, até mesmo comigo. Não há descanso, porque ainda não vislumbro o ponto de chegada - na verdade, nessa lógica do desempenho, não há um ponto de chegada.

Uma vez que o sujeito jamais encontra gratificação, ele entra em um looping de culpa e insatisfação, que o leva a sucumbir, a aniquilar-se. Nessa toada, Han é enfático ao cravar que "O sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem" (Han, 2017, p. 86). Aventa-se, assim, que o Supereu do homem neoliberal é ainda mais mandatório, crítico e algoz.

Safatle, Da Silva Junior e Dunker (2021) seguem a mesma linha sobre os impactos do neoliberalismo ao indicar que, quando há o absoluto esvaziamento da ilusão inflada do sujeito de que ele pode alcançar a plena realização, surgem sentimentos de frustração, angústia associada ao fracasso e autoculpabilização.

Adentra-se agora no campo da psicossomática, a fim de explorar como os ditames impostos pela cultura neoliberal podem contribuir para o adoecimento do sujeito.

Ávila (2012) propõe que o corpo é objeto de estudos multidisciplinares, indo da medicina e suas especialidades, passando pela psicologia, até a antropologia. O corpo é multifacetado e submetido a variadas apreensões, além de ser marcado pela conjuntura na qual está inserido e pela história de cada sujeito, o que o torna complexo.

O conceito freudiano sobre a pulsão é um conceito fronteiriço entre corpo e mente. A pulsão se representa psiquicamente por meio de coisa e palavra, e esse processo pode se dar de duas maneiras: i) inconsciente, quando a representação é somente através da coisa, pois temos um processo pré-simbólico, porquanto não foi possível nomear o que ocorre por meio das palavras, e ii) consciente, quando a representação se dá pela via da coisa e da palavra. Com a representação consciente posta, temos um investimento do quantum de afeto no que se formou - e essa relação representação/afeto ressoa em toda a teoria psicanalítica (Ávila, 2004).

McDougall (2013) esclarece que a formação psicossomática surge como resposta a conflitos de todos os tipos e que pode ser vista como um sintoma através do qual o psiquismo, utilizando recursos primitivos e pré-verbais - uma vez que não conseguiu elaborar as vivências de outra forma -, manda mensagens que serão interpretadas somaticamente pelo corpo.

Assim, a ideia é de que, no transcurso do processo mental, não houve a integração entre biológico e cultural, uma vez que o psiquismo se sente ameaçado por conteúdos dolorosos e potencialmente desestruturantes, lançando-os para fora do consciente e comunicando-os ao corpo, para que esse reaja.

 

O pensar e o sentir são, por definição, matéria psíquica [...]. Se o psíquico for excluído, suprimido, reprimido, eclipsado, haverá uma conexão direta entre o nível somático e o nível da expressão no corpo, portanto um sintoma psicossomático. (Ávila, 2012, p. 65)

 

A doença se apresentaria, então, como "um terrível desencontro de tendências dentro de si" (Ávila, 2004, p. 29). Importante ressaltar que, apesar de o adoecimento oferecer risco à vida do sujeito, esse recurso se comporta como uma estratégia defensiva, que visa evitar um dano maior ao psiquismo.

O modo como o trabalho se organiza influencia diretamente o funcionamento mental do sujeito; o equilíbrio psicossomático pode tanto se fragilizar quanto se fortalecer conforme as condições impostas no ambiente laboral. Existem dois enfoques a serem considerados na noção de satisfação do trabalho: conteúdo significativo e conteúdo ergonômico (Dejours, 2015).

A vertente significativa diz respeito a ambientes maleáveis, nos quais o trabalhador consiga dar vazão a suas aspirações, cotejando seus desejos e a realidade. Lugares e atividades que propiciam à pessoa adaptar, minimamente, o trabalho à sua personalidade, abarcando suas potencialidades e necessidades, mostram-se como mais saudáveis. 

Por seu turno, o conteúdo ergonômico refere-se à arquitetura e tecnologias que estão à disposição do trabalhador e objetivam o seu bem-estar físico, químico e biológico, retirando a nocividade da atividade laboral.

Dejours (2015) esclarece que o sofrimento marca o momento no qual o trabalhador tem a convicção de que não há como a insatisfação diminuir na conjuntura desses dois vetores.

Ávila (2012) cita o trabalho como um fator que impacta o corpo. No trecho a seguir, vemos como as duas dimensões do ambiente laboral - significativa e ergonômica - afetam o corpo nas apreensões fisiológicas e psíquicas:

 

O corpo que adoece é simultaneamente tanto o corpo do indivíduo, portanto experiencial, eminentemente subjetivo, quanto o corpo que será tratado como objeto positivo pelas práticas da medicina, farmacologia, fisioterapia, etc. Esse mesmo corpo está submetido a representações culturais, a dimensões antropológicas e sociológicas, a pressões derivadas do trabalho que esse indivíduo realiza, do seu estilo de vida, e a todo um conjunto de fatores de ordem extracorporal que, contudo, confluem para esse mesmo corpo. (Ávila, 2012, p. 60-61)

 

Em um primeiro momento, o sujeito pode experienciar a fadiga como resultado do choque entre a economia psicossomática e a organização do trabalho, sendo essa afecção tanto psíquica quanto somática. Ela se caracteriza por ser uma vivência subjetiva e se localizar no corpo; há uma repressão da atividade espontânea dos órgãos sensoriais e motores, o que seria o início de um colapso, um funcionamento ineficaz do nosso corpo (Dejours, 2015).

Mais atual que a fadiga é o constructo de burnout ou síndrome do esgotamento profissional, que passou a figurar como uma doença ocupacional pela Organização Mundial da Saúde - OMS, em 1 de janeiro de 2022. Afora as críticas pertinentes que possam ser feitas em relação a esses catálogos, pode-se sugerir que, a partir da inclusão de uma doença nesse rol, ela passa a ser divulgada nos meios de comunicação, e, com isso, vimos o termo popularizar-se no país.

A condição caracteriza-se por três dimensões: 1) sentimentos de exaustão ou esgotamento de energia; 2) aumento do distanciamento mental do próprio trabalho, ou sentimentos de negativismo ou cinismo relacionados ao próprio trabalho; e 3) redução da eficácia profissional (World Health Organization, 2019).

Alguns fatores estão associados aos índices de incidência de burnout. São eles: a) Organizacionais - burocracia, falta de autonomia, normas rígidas, mudanças frequentes, comunicação ineficiente na equipe, ambiente físico e seus riscos; b) Individuais - padrão de personalidade, gênero, estado civil, nível educacional; c) Laborais - sobrecarga, expectativas profissionais, para citar alguns; e d) Sociais - suportes social e familiar, valores e normas culturais (Trigo et al., 2007).

Os dados sobre essa doença ocupacional no país são alarmantes e carecem de atenção: o Brasil aparece como o segundo país com mais casos da doença, segundo a International Stress Management Association - ISMA, atingindo 30% de 100 milhões de trabalhadores em dados da Associação Nacional de Medicina do Trabalho - ANAMT (Quintanilha, 2022).

 

 

Redes sociais e seus potenciais danosos: O burnout não tira férias

 

Transpondo o debate para tempos atuais, não é possível falar em sociedade sem considerar a evolução tecnológica ocorrida nas últimas décadas. Somos atravessados pela interconectividade que a internet instaurou.

Nesse trabalho, propõe-se que as redes sociais instrumentalizam os ideais do neoliberalismo na medida em que suas características fomentam o adoecimento do sujeito. Os atributos das redes sociais que serão mencionados - as mídias como formações de massa, a nocividade do algoritmo e a exclusão da negatividade - afluem para que o sujeito não encontre descanso nem nos seus momentos de descanso.

Ao discorrer sobre a historicidade do conceito de psicossomática, Ávila (2004) nos diz que as peculiaridades da modernidade comprometem nossa saúde:

 

Aspectos característicos da vida moderna, como a alienação, a geração de novas necessidades, o consumo desenfreado e tendente ao supérfluo, a solidão e o isolamento [...] têm sido apontados como responsáveis por um padrão de vida perturbador e altamente estressante, com inegável influência no desenvolvimento de nocividade e patogenia a nível individual e social. (Ávila, 2004, p. 44)

 

Estima-se que o Brasil seja o terceiro país que mais consome redes sociais no mundo, sendo o primeiro na América Latina (Pacete, 2023).

Repisa-se o mote vendido pelo neoliberalismo e comprado pelo sujeito neoliberal empreendedor de si mesmo: a eficiência vem de uma autogestão bem-sucedida, sendo suficiente você ter vontade de realizar a tarefa a que se propõe. A exploração da frustração e da ansiedade, que vimos no tópico anterior, agora não está mais limitada ao ambiente de trabalho.

Para movimentar toda a máquina neoliberal, há que se continuar investindo na ideologia de que somos capazes de produzir cada dia mais e melhor. Nesse sentido, as redes sociais tornaram-se uma forte aliada, que tem o potencial de atingir milhões de pessoas, propagando e reforçando o neoliberalismo.

Freud (2020 [1921]) sugere que a psicologia individual é, no começo, simultaneamente, uma psicologia social, porquanto estamos inseridos em uma sociedade e somos influenciados por ela. O autor cita alguns pontos que caracterizam a psicologia das massas: influências mútuas, excitabilidade, impulsividade, credulidade, mutabilidade, força, submissão ao poder das palavras e onipotência, para enumerar alguns.

Ora, todas essas peculiaridades da massa freudiana são também encontradas nas redes sociais. Quando estamos online e integrados em mídias sociais, assim como quando estamos inseridos nas massas, regredimos a estágios primitivos do psiquismo e comportamo-nos de maneira instintiva: a consciência moral e o sentimento de responsabilidade desaparecem. Aquele mal-estar aduzido pela cultura não encontra lugar na massa digital, em razão de se ter o falso sentimento de invencibilidade e completude.

Participar de uma rede social é estar submetido a influências constantes oriundas dos mais diversos lugares e de uma infinidade de pessoas.

A velocidade vista nas mídias digitais exprime com eficácia que, uma vez inserido nessa sistemática, o sujeito é acometido por uma insatisfação tal qual no excerto a seguir, sobre a massa freudiana:

 

Mesmo que ela cobice as coisas com paixão, nunca é por muito tempo, pois ela é incapaz de ter uma vontade perseverante. Ela não tolera nenhum adiamento entre o seu desejo e a fruição do que foi desejado. Ela tem o sentimento de onipotência; para o indivíduo na massa desaparece o conceito de impossível. (Freud, 2020 [1921], p. 146)

 

Han (2018) não compartilha da ideia de que as redes sociais são uma massa tal qual a postulada e debatida por Freud. Para ele, a revolução digital inaugurou uma nova massa, que ele chama de "enxame digital". O enxame  caracteriza-se por não ser coerente e uniforme no sentido de ser traduzido por uma só voz, de possuir um objetivo em comum, não havendo, portanto, uma alma de massa, um "nós". Os indivíduos que compõem o enxame mantêm sua singularidade e sua própria voz.

Consequentemente, o que o enxame faz é somente barulho, ruído. Sua principal particularidade é ser volátil: tanto sua união quanto sua dissolução são efêmeras. Apesar dessa dissonância, o autor vê nessas novas configurações tantos malefícios quanto as anteriores possuíam. Para exemplificar, ele elenca a egotização da sociedade digital, que impede que um contrapoder surja para combater o capitalismo, a desintegração do comunitário, a falta de solidariedade e o avanço da privatização.

Na contemporaneidade, nossa subjetividade, em toda a sua complexidade e extensão - nossos potenciais e vulnerabilidades -, foi reduzida a números e métricas. Somos mediados pelas mídias digitais; nossos desejos e a linguagem são atravessados pelo que consumimos quando estamos online.

As redes sociais possuem, em sua estrutura, os chamados algoritmos, que são códigos computacionais/matemáticos programados para diversas finalidades. O'Neil (2020) apresenta como esses códigos ditam nossa vida cotidiana. Uma aludida manipulação está em curso e serve aos interesses, essencialmente, de grandes corporações.

Os mais variados dados pessoais - como idade, hábitos de consumo, localização, sites visitados, tempo gasto na internet, local onde estudamos, trabalhamos, visitamos, rede de amigos etc. - são coletados e tratados por meio dessas programações. Desta feita, pautam de avaliações escolares, escores de crédito a quais conteúdos publicitários serão mostrados nas nossas telas.

O lado perverso desse algoritmo é que os parâmetros não são de conhecimento público. Não se sabe quais fatores são levados em consideração e quais são descartados. Esse modelo viciado e oculto de programação é o que a autora chamou de Armas de Destruição Matemáticas - ADMs, tamanho o poder de dano que possui.

Confrontando a construção de redes sociais como uma massa e a operação algorítmica nebulosa, descortina-se um cenário realmente sui generis: podemos passar uma vida inteira consumindo e interagindo somente com o meio e com as pessoas que reforçam nossas fantasias narcísicas de onipotência.

O processo que se desdobra é o seguinte: 1) consumimos um conteúdo X; 2) o algoritmo "entenderá" que gostamos daquilo; 3) o algoritmo nos mostrará cada vez mais coisas relacionadas a X; 4) sendo algo que nos interessa, vamos parar para ver, ouvir, ler etc.; e 5) novamente, o algoritmo computará que gostamos de X, mostrando em nossas telas mais do mesmo conteúdo em um fluxo contínuo de retroalimentação.

Um outro aspecto impulsionado pelo digital é que a negatividade foi retirada de cena. Deparamo-nos com a sociedade do desempenho personificada em coachs motivacionais, que pregam a meritocracia e o "trabalhe enquanto eles dormem". Reforça-se que os valores e normas culturais podem representar fatores de risco para o desenvolvimento do burnout, já que elementos sociais impactam a percepção do sujeito sobre si mesmo e sobre seu ambiente de trabalho (Trigo et al., 2007).

Ao entrar nas suas redes sociais para procurar lazer e entretenimento, você pode se deparar com publicidades de cursos para aprender um novo idioma, dicas para fazer networking, mantras para entoar antes de ir ao trabalho e se tornar mais positivo, mentorias para gerir melhor sua carreira, 10 passos para se tornar um profissional mais valorizado, como usar o marketing digital para empreender e ganhar mais dinheiro, e por aí vai.

À vista disso, questiona-se como passar incólume pelo Instagram, Facebook, TikTok etc. sem sermos afetados por todo esse discurso de produtividade desenfreada.

Não havendo repouso nem quando estamos fora do horário de trabalho, levamos para nossa casa os sintomas de exaustão emocional que o burnout inflige, tais como desesperança, solidão, raiva, impaciência, irritabilidade, tensão, baixa energia, fraqueza, preocupação, entre outros. 

 

Considerações finais

 

Com a passagem inexorável do tempo, surgem mudanças que impõem novos contextos e seus desafios. 

Tentou-se aqui iniciar e fomentar uma reflexão sobre como a contemporaneidade e as redes sociais impactam a nossa saúde física e mental.

Descrevendo brevemente como o neoliberalismo inovou ao alçar o sujeito a empreendedor de si mesmo, com a crença de que ele é capaz de tudo se tiver vontade, criou-se uma base para que fosse trazida à baila a exploração psíquica como ferramenta de manutenção do status quo que agride o sujeito e seu corpo, culminando no desenvolvimento do burnout.

Traçou-se um paralelo entre as redes sociais e as formações de massa freudiana para exemplificar como estamos à mercê de um sistema que nos apequena, que nos reduz a métricas e instrumentaliza a produtividade e o cansaço.

Pode-se acreditar que as redes sociais são apenas um novo espaço de interação social, tal como qualquer outro ambiente, porém debates urgem ser levantados, a fim de questionar esses meios como produtores de alienação e sujeição do indivíduo e de grupos inteiros a uma cultura mordaz de desempenho.

Cada dia mais, espera-se que, diante desse panorama, discussões multidisciplinares possam ser suscitadas, com a expectativa de criar campos de diálogo que propiciem ao sujeito dar vazão à sua singularidade, elaborando seus sofrimentos com escuta e acolhimento, indo além de um código de computador.

 

 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Kadichary Garcia Ivassaki*
Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP

Psicanalista com formação pelo Centro de Estudos Psicanalíticos - CEP. Analista integrante da ONG Núcleo de Psicanálise e Ação Social - NUPAS, que realiza atendimentos a grupos em instituições. Pós-graduada em Neuropsicologia.

Notas

 

Referências bibliográficas

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ÁVILA, L. A. O corpo, a subjetividade e a psicossomática. Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 44.i, p. 51-69, 2012. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/. Acesso em: 1 maio 23.

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FREUD, S. (1930). O mal-estar na cultura. In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Tradução Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

FREUD, S. (1921). Psicologia das massas e análise do eu. In: FREUD, S. Cultura, sociedade, religião: O mal-estar na cultura e outros escritos. Tradução Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

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