ARTIGOS

O ofício do escritor e do analista


The craft of the writer and the analyst
Cristina Kiyomi Goto Oyadomari*

RESUMO
O presente artigo foi inicialmente apresentado, em versão mais sucinta, como trabalho de conclusão para a disciplina Psicopatologia Freudiana, do terceiro semestre do curso de especialização e formação em Psicossomática Psicanalítica, sendo resultado da integração dos conhecimentos adquiridos desde o início do curso, bem como da prática clínica. Com base na leitura de artigos e obras literárias de Jeferson Tenório e Clarice Lispector, buscou-se refletir sobre os processos de simbolização, distinguindo-os entre primários e secundários, e sobre a importância da qualidade das primeiras relações entre o sujeito e o ambiente para a formação e integração do sujeito em uma unidade psicossomática. Pelos pressupostos da psicossomática psicanalítica, procurou-se demonstrar a íntima ligação entre a capacidade de representação simbólica e as possibilidades de autonomia do sujeito na cultura e na sociedade, bem como de organização e reorganização da unidade psicossomática. Considerou-se a defesa do direito à fruição da arte, em geral, e da literatura, em particular, como dispositivo emancipador do sujeito na cultura, direito esse elevado por Antonio Candido à alçada de um direito humano, por apresentar o potencial de função humanizadora. Propiciar o acesso às artes e à literatura significa oferecer um lugar para o sonho.

Palavras-chave: Simbolização, Objeto Mediador, Psicanálise e Cultura, Arte e Psicanálise, Sublimação.

ABSTRACT
The present article was initially presented, in a more succinct version, as a final paper for the subject Freudian Psychopathology, of the third semester of the specialization and training course in Psychoanalytic Psychosomatics, being the result of the integration of the knowledge acquired since the beginning of the course, as well as of clinical practice. Based on reading articles and literary works by Jeferson Tenório and Clarice Lispector, I sought to reflect on the symbolization processes, distinguishing them between primary and secondary, and on the importance of the quality of the first relationships between the subject and the environment for the formation and integration of the subject into a psychosomatic unit. Based on the assumptions of psychoanalytic psychosomatics, I tried to demonstrate the intimate connection between the capacity for symbolic representation and the subject's autonomy possibilities in culture and society, as well as the organization and reorganization of the psychosomatic unit. The defense of the right to enjoy art, in general, and literature, in particular, was considered as an emancipatory device for the subject in culture, a right elevated by Antonio Candido to the status of a human right, as it presents the potential for a humanizing function. Providing access to arts and literature means offering a place for dreams.

Keywords: Symbolization, Mediating Object, Psychoanalysis and Culture, Art and Psychoanalysis, Sublimation.


Foi a literatura que me permitiu construir instrumentos e mecanismos internos capazes de discordar da vida. É a literatura que me resgata e me traz de volta ao mundo. Não tenho dúvidas de que será pelo sonho e pela ficção que nos salvaremos todos. A literatura salva? (Tenório, 2022)

 

Em junho de 2022, deparei-me com um artigo de Jeferson Tenório - autor de O avesso da pele, ganhador do prêmio Jabuti de 2021 -, intitulado "A literatura salva?", assim, em forma de questionamento.

Essa frase já foi dita e escrita incontáveis vezes - como afirmação, proposição, ideal, mas Tenório inicia sua crônica fazendo uma pergunta, a que ele responde através de sua própria história de vida: "Penso que a salvação pela literatura nada tem a ver com um tipo de antídoto. Tem a ver com a salvação relacionada à tomada de consciência" (Tenório, 2022).

Dentre os autores citados por Tenório está Clarice Lispector: "Clarice me salvou de ser condenado a tatear apenas a superfície das coisas" (Tenório, 2022). Considero esta frase-homenagem muito digna de Clarice, minha escritora favorita quando o tema é traduzir, em palavras, o indizível.

Entretanto, a própria Clarice via seu ofício como "pouco, muito pouco" diante da sua indignação contra as desigualdades sociais e misérias humanas. Em suas palavras:

 

 

 Um nome para o que eu sou, importa muito pouco.   Importa o que eu gostaria de ser. O que eu gostaria de   ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta   pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por   que foi o destino me levando a escrever o que já   escrevi, em vez de também desenvolver em mim a  qualidade de lutadora que eu tinha? [...]   
E lembro-me de como eu vibrava e de como eu me   prometia que um dia esta seria a minha tarefa: a de   defender os direitos dos outros. 

No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei  sendo  uma pessoa que procura o que profundamente  se sente e usa  a  palavra que o exprima. É pouco, é   muito pouco. (Lispector,  2020)

 

A linguagem não só nos insere na cultura, mas, sobretudo, permite que desenvolvamos a capacidade de autoconsciência reflexiva, isto é, pensar a respeito de nossos próprios desejos, vontades e atos - capacidade que diferencia o ser humano dos outros animais.

Penso que o escritor e o analista compartilham a possibilidade de (re)criar narrativas humanas, escolhendo minuciosamente as palavras, não apenas para ser compreendidos pelo outro, mas, principalmente, para dar significância às experiências, para que possam se constituir em vivências significativas, ou ainda, para que sejam ressignificadas, permitindo a fluidez do viver.

Freud não conceituou diretamente a expressão "vivências significativas", mas é possível inferir, ao longo de sua obra, sua distinção do mero experienciar, e a importância dessa distinção no desenvolvimento e na evolução da teoria psicanalítica, tanto a metapsicologia freudiana como as pós-kleinianas.

A experiência pode ser compreendida como estímulo captado pelos órgãos sensoriais - visão, audição, tato, olfato, paladar. É de ordem individual, subjetiva, efêmera e, por si só, jamais será armazenada em nosso sistema mnemônico. As experiências diferenciam-se das vivências, pois nem sempre são percebidas pela consciência devido à rapidez, quantidade e variedade com que se sucedem na vida cotidiana.

Ao vincular a vivência ao sistema perceptivo, localizado na superfície do aparelho psíquico, ter uma vivência passa a ser a mesma coisa que perceber. A percepção é, então, o resultado da interação entre duas coisas reais e presentes, em que uma, denominada objeto, estimula a outra, o sujeito, através do sistema perceptivo. Consequentemente, a parte estimulada criará uma ideia ou representação (mental) das sensações dentro do aparelho psíquico (Freud, 1996).

Adicionalmente, na metapsicologia freudiana, toda experiência direta percebida é também acompanhada de uma soma de excitação, o afeto. É o afeto que dá a expressão qualitativa subjetiva da quantidade de energia pulsional e das variações de uma vivência (Freud, 1996).

É o modelo da reflexividade tátil - quando toco em algo, também é possível sentir-me tocado - que permite ao sujeito em desenvolvimento a capacidade de discernir entre o si mesmo e o exterior, entre o eu e o não eu (Anzieu, 1989).

O tato é um dos cinco sentidos, cuja propriedade está presente em todo o corpo humano, propiciada pela pele, o maior órgão do corpo biológico, cuja funcionalidade pode ser descrita como um envelope que separa o organismo do mundo externo, criando uma fronteira entre o eu e o não eu - raiz do psiquismo (Anzieu, 1989).

O aspecto qualitativo da vivência é dado pela consciência, que, na teoria freudiana, pertence à ordem do sensorial, que se diferencia do sistema perceptivo pelo fato de seus estímulos serem intrapsíquicos. Assim, é no sistema pré-consciente/consciente que aparecem as sensações de prazer-desprazer (Freud, 1996).

Uma vivência significativa seria, então, uma vivência afetivamente marcante e marcada no sistema mnemônico. É o sistema mnemônico, por sua vez, que traduz em traços mnésicos duradouros as impressões sensoriais momentâneas, utilizando-se do mecanismo de associação (Freud, 1996).

O termo "associação", em psicanálise, refere-se à ligação entre dois ou mais elementos psíquicos, cuja série constitui uma cadeia ou complexo associativo. As ligações entre os elementos não são, permanentemente, estáveis entre si, mas dependem de fatores econômicos da energia pulsional ou do quantum de afeto.[1]

No texto sobre "O Inconsciente", de 1915, Freud esclareceu que somente as representações-coisa estão presentes no inconsciente, e o pré-consciente emergiria da associação entre a representação-palavra e a representação-coisa do inconsciente. Entretanto, boa parte das representações-coisa jamais se associarão a representações-palavra, permanecendo no inconsciente; assim como, em algumas situações experienciadas durante a vida, uma representação-coisa que tenha tido acesso ao pré-consciente, em algum momento, pode voltar ao inconsciente por perder seu vínculo com a palavra, ou ainda por constituir-se apenas em representação-coisa sensorial, ou seja, a percepção de uma experiência sensorial (Freud, 2010a).

Sobre o último tipo de representação-coisa, são ocasionadas por experiências vividas com tamanha intensidade, violência, excesso e imprevisibilidade, gerando tamanho desprazer e horror, que, ao invés de criar uma representação mental, congelam o sujeito no momento exato da percepção - o trauma, impedindo que o vivido adquira possibilidade de expressão na linguagem, pois consolidou-se como representação-coisa - ou experiência sensorial. E assim, o acontecido - o jamais dito - impede a pessoa de seguir sua tendência ao amadurecimento (Freud, 2010a).

A tendência inata ao amadurecimento não é determinação condicionada apenas à passagem do tempo; para que seja alcançada (e mantida) a integração em uma unidade, há que se depender de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. O amadurecimento inicia-se em algum momento após a concepção e, se houver saúde (integral), não cessa até a morte (Winnicott, 1983).

Sobre o retorno ao inconsciente por perda de associação com a palavra, Freud postulou que o mecanismo responsável por essa perda é o recalque. Em "Os instintos e seus destinos" (1915), ele esclarece que o que é recalcado é o representante da pulsão, mas não o afeto. Sobre esse destino da pulsão, o recalque, podemos distinguir duas situações psicopatológicas: a conversão histérica e a neurose obsessiva (Freud, 2010b).

Na conversão histérica, a representação inconsciente transfere sua soma de excitação para uma inervação corporal, criando um símbolo histérico - uma substituição, para que o afeto da experiência permaneça suprimido. Já na neurose obsessiva, as representações recalcadas podem voltar ao sistema pré-consciente/consciente por meio do mecanismo de deslocamento para outras representações-palavras. Nas psicoses, as representações de palavras passam a se comportar como representações-coisa, daí o discurso característico dos psicóticos (Freud; Breuer, 2016).

Há ainda uma outra situação em que a representação-coisa se instaura, sem possibilidade de associação a uma representação-palavra, mas não foi Freud quem a concebeu: quando a quantidade e a qualidade das representações psíquicas são escassas ou inacessíveis.

Quem teorizou sobre a capacidade psíquica do ser humano diante do desafio de viver foi Marty (1993), com o conceito de mentalização, já no campo da psicossomática psicanalítica. Podemos compreender mentalização como o conjunto de representações inscritas no psiquismo, e é este conjunto que se constitui como a base da vida mental saudável. Mas, para que assim seja, ligações longitudinais e transversais devem ser estabelecidas entre as representações no pré-consciente, formando cadeias associativas capazes de estabelecer um diálogo entre aquisições mentais decorrentes de diferentes fases do desenvolvimento - o que Volich chamou, em suas aulas, de densidade do pré-consciente.

Sobre as variações quantitativas e qualitativas das representações, Marty (1993) concebeu que podem variar de acordo com o funcionamento orgânico ou mental, ou seja, quando escassas ou inacessíveis, as representações apontam para dois tipos de problemas: um comprometimento das bases perceptivas (sensoriais) do sujeito - orgânico, ou um déficit de capacidade associativa decorrente de limitações emocionais, na maioria dos casos, experienciadas na primeira infância - psicoemocional.

Não desenvolverei neste ensaio os conceitos e diferenças entre a boa e a má mentalização, tampouco sobre as novas entidades nosográficas decorrentes da concepção da importância das representações para a saúde psíquica e mental. São temas que merecem um outro ensaio ou artigo.

Retomando as considerações apresentadas no início deste ensaio acadêmico, gostaria de enfatizar a palavra e, consequentemente, a linguagem como os mais altos graus de simbolização. Para Laplanche e Pontalis, de modo mais geral, simbólico "designa a relação que une o conteúdo manifesto de um comportamento, pensamento, ideia, de uma palavra ao seu sentido latente" (Laplanche; Pontalis, 2000, p. 483).

A literatura salva? Tentarei responder ao questionamento de Tenório (2022), argumentando (também) pela perspectiva psicanalítica. A literatura deriva da palavra latina litterae - conjunto de conhecimentos e competências para escrever e ler bem, intimamente relacionada com a arte da gramática, da retórica e da poética.

A literatura é uma manifestação artística - sublimação, um dos destinos pulsionais mais nobres para Freud, uma vez que a pulsão é transformada, ou seja, dessexualizada em sua meta, mas não em sua força ou pressão, conciliando, em última instância, o princípio do prazer (independe do recalque) e o princípio de realidade (inserção na cultura). Ao promover a criação de um novo objeto - a arte -, a pulsão ganha um novo objeto ao qual se pode ligar. Neste sentido, é a pulsão de vida que promove a sublimação.

A obra literária utiliza-se da linguagem de maneira estética, ou seja, como meio para criar uma inundação de sensações, ao mesmo tempo que seu conteúdo-interior é inapreensível pelo sensorial, levando o sujeito-leitor a pensar. O conflito estético pode ser compreendido, ao longo da vida, como o ponto de partida para o desenvolvimento da função pensamento (Levy, 2022).    

A experiência estética tem íntima ligação com o sistema perceptivo, pois é uma forma de intuir o mundo exterior pela contemplação, independente do uso da razão. Filosoficamente, permite um grau elevado de consciência, não apenas do fenômeno, mas sobre as vontades de potência e de vida.

Quanto ao objetivo da literatura como manifestação artística, destaco a dialética criativa. O autor (re)constrói o mundo com base em suas vivências, da forma como é afetado por elas, afetando diretamente o leitor. Por sua vez, o leitor, afetado pela leitura da obra literária, pode transformar e (re)criar sua realidade - cocriação (Vigotski, 2001).

Ao compartilhar sua história e (re)criações, o escritor fornece ao leitor a possibilidade de ampliar seu mundo interno, nomear suas angústias, reconhecer-se no sofrimento das personagens, ganhar um sentimento de pertença em uma sociedade que privilegia as aparências em detrimento do ser e do sentir.

"Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima" (Lispector, 2020). Compreendo a lamentação de Clarice em seu sentimento de impotência diante dos invisibilizados e desvalidos da sociedade brasileira, o não poder "defender os direitos dos outros".

Justamente neste ponto dessa crônica de 1968 (Lispector, 2020), minha memória viaja ao reencontro de Antonio Candido e sua palestra de abertura da reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de 1988, ano da promulgação da Constituição Cidadã, assim chamada, pois elaborada no contexto da redemocratização do país (Candido, 2011).

Em uma associação histórico-imaginária, evoco "O direito à literatura" (Candido, 2011) como uma espécie de embasamento para a escolha vocacional de Clarice. Permito-me esta possibilidade, pois o filósofo, crítico literário e professor Antonio Candido, em sua vida e obra, comprometeu-se com o papel emancipador da leitura literária e o acesso à cultura.

Dentre as muitas reflexões levantadas no texto, Candido (2011) fala-nos sobre a função humanizadora das artes e da literatura, em específico, defendendo a fruição da literatura como direito humano.

Ora, ainda hoje pode soar um tanto delirante a ideia de defender a fruição da arte e da literatura como direito humano. Entretanto, Candido (2011) nos lembra que incluir o outro no mesmo elenco de bens e direitos que reivindicamos está na base de qualquer reflexão sobre Direitos Humanos.

Citando a distinção estabelecida por Louis-Joseph Lebret, fundador do movimento Economia e Humanismo, com quem conviveu e atuou no Brasil durante as décadas de 1940 e 1960, entre bens compressíveis e incompressíveis,[2] Candido (2011) nos alerta que cada época e cultura definem os critérios de incompressibilidade de bens e direitos, critérios esses ligados à divisão da sociedade em classes socioeconômicas.

Lembra-nos, para nossa surpresa e horror, que a educação pode ser usada como instrumento ideológico para ditar que o que é indispensável para um grupo social não é, necessariamente, para outro. Embora Candido (2011) tenha escrito esses textos há décadas, a relação entre direitos humanos e classe social continua estreitíssima e tristemente inversa e dependente.

Por que considerar o direito ao lazer, ao descanso, à liberdade de opinião e de crença, à fruição da arte, à literatura e à cultura erudita como direito reservado a algumas camadas da sociedade brasileira? Como artigos de luxo?

Só a título de curiosidade histórico-social, em projeto de emenda à Constituição de 1946, o escritor Jorge Amado, então também deputado, defendendo a imunidade tributária dos livros, escreveu:

 

Nossa emenda, Sr. Presidente, visa, evidentemente, libertar o livro brasileiro daquilo que mais trabalha contra êle, daquilo que impede que a cultura brasileira mais ràpidamente se popularize, daquilo que evita chegue o livro fàcilmente a tôdas as mãos, fazendo seja êle no Brasil um objeto de luxo, quando, tanto o livro escolar quanto o de cultura mais alta constituem necessidade de todos os brasileiros. (redação original) (Senado Federal, 1946)

 

Triste repetição histórica: em 2021, defendendo a reforma tributária, a Receita Federal (Barbosa, 2021), sob o comando de Paulo Guedes, então ministro da economia, defendeu tributar em 12% os livros não didáticos, nos seguintes termos:

 

De acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2019 (POF), famílias com renda de até 2 salários-mínimos não consomem livros não didáticos, e a maior parte desses livros é consumida pelas famílias com renda superior a 10 salários-mínimos. Neste sentido, dada a escassez dos recursos públicos, a tributação dos livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objetivo de políticas focalizadas.

 

Por meio da reflexão sobre direitos humanos e acesso aos bens incompressíveis é que também poderemos chegar, juntamente com Candido (2011), à defesa da função humanizadora da literatura. Função humanizadora, eis aqui o ponto de contato entre literatura e psicanálise: tornar humano, civilizado, dar condição humana a uma ação ou atitude, inclusive, condição e possibilidade de transformação da realidade, tanto a subjetiva como a objetiva.

"O bebê e o cuidado materno juntos formam uma unidade", a tão conhecida frase de Winnicott (2022), encerra em si uma questão primordial na constituição subjetiva: o ser humano não nasce pronto; torna-se humano sob cuidados e na relação com outros seres humanos ao longo da vida, passando gradativamente do estado de dependência absoluta ao de autonomia relativa.

Winnicott foi um dos teóricos que, posteriormente a Klein e paralelamente a Bion, estudou a dimensão estética na psicanálise como precursora da constituição subjetiva e do desenvolvimento da função pensamento.

É a partir da experiência estética do encontro entre a mãe e seu bebê que o sentimento de existir e habitar o próprio corpo podem ser vividos pelo ser humano em constituição. Concomitantemente, toda a sensorialidade do mesmo encontro estimula o pensamento criativo a simbolizar a experiência emocional e psíquica diante da presença do outro real e objetivo.

Não basta para o homem estar inserido na linguagem e fazer um uso instrumental dela. Por uso instrumental quero dizer usar a palavra na concretude da realidade. Negar o direito à literatura é negar o acesso ao sonho.

Enquanto construção e criação possibilitada pela fantasia e pelo sonhar, a literatura se oferece como instrumento, forma de expressão subjetiva e transmissão de conhecimento. Mas, talvez, seu aspecto verdadeiramente humanizador seja o de construção e criação.

A função humanizadora não seria aquela em que a simbolização primária, processo constitutivo do ego corporal, e a simbolização secundária, processo constitutivo da linguagem e do pensamento pré-consciente e consciente, se integram, possibilitando a construção e a criação de uma narrativa coesa, passível de ser comunicada ao outro e de ser compreendida?

O domínio da linguagem, em seu aspecto construtivo, organiza o caos das pulsões livres, as sensações e emoções puras em combinações estruturadas sob uma forma coesa, concisa, cognoscível, inteligível - transformar a matéria bruta em matéria-prima. Nomear, representar, elaborar são ações que permitem ao sujeito fazer uso da linguagem enquanto dispositivo - morfologia, gramática e sintaxe também para organizar afetos, pensamentos, temporalidades.

A produção de narrativas dá uma espécie de destinação às palavras antes soltas e perdidas e as organiza, construindo um todo, mas um todo que se articula com cada uma de suas partes (ligação) e que se torna maior que a soma dessas mesmas partes.

Essa organização também tem o poder de se comunicar com nossas dimensões mais profundas e primitivas, possibilitando resgates e ressignificações, como é o caso das narrativas produzidas no espaço de mutualidade psíquica nas sessões psicoterapêuticas.

É o uso consciente da palavra, saber usá-la como representação simbólica dos acontecidos (e não ditos), vividos e experienciados, através dos recursos estilísticos da língua, as chamadas figuras de linguagem, classificadas em quatro grandes grupos - figuras de palavra, figuras de sintaxe, figuras de pensamento e figuras de som - e utilizadas para dar maior expressividade às construções textuais, que talvez marque o caráter organizador e humanizador da literatura.

Embora Freud não tenha elaborado sua teoria com base em recursos da Linguística, como Lacan, seu conceito de inconsciente abrange a linguagem. As formações do inconsciente - sonhos, chistes, atos falhos, lapsos, afasias, sintomas neuróticos e também os não neuróticos - são articulações que envolvem a linguagem e suas distorções ou a falta dela.

Não por acaso, o trabalho do analista envolve dispensar atenção especial aos fenômenos da linguagem: desmontando, traduzindo e interpretando os jogos de palavras, metáforas e metonímias; buscando o sentido latente de uma palavra usada significando uma outra, às vezes oposta ao sentido manifesto; e, não raras vezes, ajudando o paciente a encontrar a palavra que "exprima o que profundamente se sente", valendo-se do encontro (inclusive como experiência estética) em um setting acolhedor.

Neste sentido, o analista é uma espécie de escritor, um ghost-writer.[3] E não deve assinar, porque permitiu ser usado[4] enquanto um novo objeto pelo analisando.

O analisando traz a história, e às vezes nem sabe que a tem. O analista precisa ter a técnica e o conhecimento para ajudar a construir, inclusive nos vazios e lacunas. Juntos, analisando e analista podem se dar ao criar na área de mutualidade psíquica.

A literatura pode, inclusive, ser utilizada como objeto mediador nas psicoterapias com sujeitos com poucas possiblidades de simbolização e associação, ajudando-os a enriquecer seu pré-consciente com novas representações de palavras e experiências estéticas.

Assim sendo, humildemente, ofereço um contraponto à lamentação de Clarice: o que você se tornou e o que construiu, Clarice, não foi pouco. Foi muito, foi abundante, foi sublime. Combinação sensível de vocação e talento. Construiu possibilidades para muitos que leram suas obras e para muitos que ainda o farão, oferecendo possibilidade e acesso a um lugar para sonhar, potencialmente transformador.

 

Salva a alma presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. (Lispector, 2020 [1968])


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Cristina Kiyomi Goto Oyadomari*
Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae

*Psicóloga clínica pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Membro aspirante do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Aprimoramento clínico pelo Instituto Sedes Sapientiae, curso Conflito e Sintoma. Aluna do curso de especialização em Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em Comunicação de Marketing pela FGV-EAESP. Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.

Notas

 


[1] Fator quantitativo do substrato do afeto vivido subjetivamente.

[2] Bens incompressíveis são todos os bens e direitos que não podem ser reduzidos ou suprimidos por força de autoridade política, religiosa ou ideológica.

[3] Ghost-writer: escritor fantasma.

[4] Uso de objeto: conceito elaborado por Winnicott, originalmente, em artigo para a Sociedade Psicanalítica de Nova York, em 12 de novembro de 1969, e publicado em O brincar e a realidade, em 1971, para distinguir a evolução da relação de objeto subjetiva e onipotente para um objeto real, com suas propriedades próprias, retirando o sujeito da área de ilusão de onipotência. 

Referências bibliográficas

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BARBOSA, M. Receita defende taxação de livros sob argumento de que pobres não leem. Correio Braziliense, 7 abr. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.brl. Acesso em: 23 mar. 2023.

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WINNICOTT, D. W. (1971). O brincar e a realidade. Tradução Breno Longhi. Revisão técnica de Leopoldo Fulgêncio. Conselho técnico Ana Lila Lejarraga, Christian Dunker, Gilberto Safra, Leopoldo Fulgêncio, Tales Ab'Saber. São Paulo: Ubu, 2019.

 

 


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