ARTIGOS

Os impactos da gestação da psicoterapeuta no exercício da clínica: um estudo psicanalítico


The impacts of the psychotherapist
Aline Vilarinho Montezi
Bruna Ceruti Quintanilha

RESUMO
Partindo do pressuposto de que a gestação se constitui como um processo peculiar na vida da mulher, carregado de mudanças sustentadas por alterações orgânicas, bem como psicológicas e sociais, considera-se pertinente a investigação de tais impactos na vida da psicoterapeuta gestante. O uso da teoria psicanalítica no presente estudo mostra-se apropriado, uma vez que a identificação de elementos transferenciais e contratransferenciais na relação psicoterapeuta-paciente auxiliaria na compreensão das possíveis transformações do percurso terapêutico. Para isso, foram realizadas entrevistas clínicas, semiestruturadas, com cinco psicoterapeutas que viveram, pelo menos, uma gestação. O conteúdo do material foi analisado à luz do método psicanalítico de associações livres e atenção equiflutuante e permitiu a emergência de três categorias: “Não acredito!”; “Padecer no paraíso” e “Lagartas & Borboletas”. A partir dos resultados, foi possível concluir que a gestação da psicoterapeuta se configura em um momento fecundo tanto para ela quanto para os pacientes. No entanto, é necessário haver provisão ambiental para que ambos consigam sustentar e elaborar tamanhas mudanças e, consequentemente, viver um processo de transformação e amadurecimento.

Palavras-chave: Psicoterapeuta, Gestação, Psicanálise.

ABSTRACT
Assuming that pregnancy is a peculiar process in a woman's life, loaded with changes sustained by organic as well as psychological and social changes, the investigation of such impacts on the pregnant psychotherapist's life is considered pertinent. The use of psychoanalytic theory in this study is appropriate, since the identification of transference and countertransference elements in the psychotherapist-patient relationship would help to understand the possible transformations in the therapeutic path. To this end, semi-structured clinical interviews were conducted with five psychotherapists who had experienced at least one pregnancy. The content of the material was analyzed in the light of the psychoanalytic method of free associations and balanced attention and allowed the emergence of three categories:"I do not believe!"; “Paining in Paradise” and “Caterpillars & Butterflies”. From the results, it was possible to conclude that the psychotherapist's pregnancy is a fruitful moment for both her and her patients. However, there is a need for environmental provision so that both can sustain and elaborate such changes and, consequently, live a process of transformation and maturation.

Keywords: Psychotherapist, Pregnancy, Psychoanalysis.


Introdução

 

Debruçar-se sobre os efeitos de experiências diversas, no âmbito pessoal, vivenciadas pelos terapeutas é uma prática realizada desde sempre. Por constituir uma figura cuidadora, o terapeuta deve reunir competências que não se refiram somente ao conhecimento acadêmico, mas também à esfera pessoal. Em sua dissertação de mestrado, Braulino (2018) investigou de que forma as experiências pessoais podem influenciar no desenvolvimento profissional do terapeuta, concluindo que tanto as vivências positivas quanto as negativas são dotadas de um potencial mutativo para terapeutas e pacientes. No entanto, é necessário um trabalho cuidadoso por parte do profissional para conseguir elaborar e manejar os impactos nos atendimentos clínicos.

Dentre as experiências pessoais, a gestação é um dos possíveis eventos vivenciados pelas psicoterapeutas. Configura-se como um momento peculiar na vida da mulher, marcado por uma nova etapa do desenvolvimento, que apresenta intensas modificações em várias dimensões, como fisiológicas, psicológicas, sociais e culturais.Essas modificações se fazem presentes no setting de forma notável,podendo surgir necessidades de trocas de horário devido a consultas, exames ou até mesmo uma condição limitante, como repouso absoluto ou internações inesperadas.

De certo modo, essas transformações colocam em evidência a postura de neutralidade da terapeuta, impactando diretamente sobre o par analítico terapeuta e paciente, de modo imprevisível e significativo. Tonon, Romani e Grossi (2012) afirmam que essa modificação concreta e reveladora da vida da terapeuta repercute nos elementos transferenciais e contratransferenciais. Do ponto de vista do paciente, essa condição pode se configurar como estímulos que despertam conflitos, fantasias e desejos infantis reprimidos.

Assim como outros períodos relevantes do amadurecimento humano, a crise decorrente da transição para a maternidade, sobretudo no aspecto psicológico, pode reativar sentimentos de incapacidade, angústia de separação, lembranças do relacionamento com os pais e mudança de papéis (Winnicott, 1982 [1945]). Há um trabalho intrapsíquico, sobretudo na construção da identidade materna, por meio de uma imagem idealizada de si como mãe e do bebê como filho. Dessa maneira, a ansiedade e a vulnerabilidade em situações cotidianas provocam mudanças nas condutas e nos relacionamentos da gestante.

Nesta linha, consideramos a pertinência do olhar para os movimentos relevantes da gestação da terapeuta, visto que tal fenômeno pode configurar-se como uma experiência ambivalente para o par analítico. Para a analista, pode ser desafiadora a experiência de dividir-se entre o seu narcisismo e o investimento em uma escuta atravessada pela abstinência, constantemente ameaçada pela reorganização psíquica, pelos sentimentos diversos despertados a partir da transferência e do avanço da gestação. Para os pacientes, o fenômeno mobiliza fantasias diversas, desde as regressivas, como retorno ao útero e desamparo, até aspectos edípicos da vivência infantil (Degnani et al., 2020).

Para nos aproximarmos das produções da comunidade científica sobre o tema, realizamos uma busca na base de dados Scientific Eletronic Library Online (Scielo), e encontramos apenas dois estudos publicados nos últimos dez anos sobre o tema da psicoterapeuta gestante.

O primeiro consiste em um trabalho qualitativo, no qual foram entrevistadas psicólogas clínicas que já vivenciaram, pelo menos, uma gestação. As autoras constataram que, do ponto de vista da psicoterapeuta, o elemento neutralidade é colocado em xeque e interfere diretamente no curso da terapia, uma vez que o crescimento da barriga e a existência de um novo ser revelam detalhes da vida privada capazes de despertar sentimentos diversos no analisando. Em relação ao paciente, o terceiro elemento - o bebê - provoca emergência e manejo de vivências infantis, sobretudo no que se refere a conflitos com a figura materna, vivências de abandono e desamparo, complexo de Édipo e fraternal.

O outro estudo examinado é uma investigação empírica, em que foram analisadas algumas sessões de atendimento infantil antes e durante a gestação da psicoterapeuta (Schmidt; Gastaud; Ramires, 2018). Ao final, concluiu-se que, apesar das regressões apresentadas pela criança, houve progressos importantes antes da interrupção, e, nos pacientes adultos, como mulheres, foram intensificados conflitos pré-edipianos e relacionados à feminilidade e sexualidade.

Com base nessas considerações, vimos a pertinência de nos aproximarmos da experiência de psicólogas gestantes que realizam atendimentos clínicos em consultórios e/ou instituições para verificar os conteúdos emergentes. Por se tratar de uma figura cuidadora, compreender o próprio processo de gestar pode colaborar na adequação às demandas dos pacientes e na atenção às mudanças do processo psicoterapêutico. Tais desdobramentos, juntamente com a escassez de trabalhos publicados sobre o tema, requerem maiores reflexões e aprofundamento, os quais serão realizados no presente trabalho.

 

Método

 

O presente estudo está inserido na modalidade qualitativa, uma vez que prioriza os significados das experiências humanas a partir das relações. Nesta linha, Turato (2005) enfatiza a importância das pesquisas relacionadas aos cuidados de saúde, priorizando o foco multimetodológico de abordagem interpretativa.

O referencial teórico adotado é o psicanalítico, na perspectiva dramática e intersubjetiva proposta por Bleger (1984 [1963]), que, ao utilizar o método psicanalítico de investigação, proporciona possibilidades de compreender, sobretudo, a dimensão inconsciente sobre os fenômenos humanos (Schulte; Gallo-Belluzo; Aiello-Vaisberg, 2019). Tal método adota a "atenção equiflutuante" e a "associação livre", tal como propôs Freud (1922) na criação da Psicanálise como método, nas etapas de investigação.

A pesquisa foi submetida ao Conselho de Ética e Pesquisa do Hospital Municipal Dr. Mário Gatti e teve a aprovação sob o número 38583420.0.0000.5453. Após a aprovação, iniciou-se a etapa de coleta de dados da pesquisa, via entrevistas.

A primeira etapa consistiu na seleção de psicoterapeutas que vivenciaram, pelo menos, uma gestação. A partir de indicações, foram realizados contatos telefônicos e via redes sociais com as que aceitaram participar da pesquisa, agendando um horário para conversar. Posteriormente, foram realizadas as entrevistas, com algumas perguntas disparadoras, a fim de que as participantes pudessem discorrer da forma mais livre possível sobre suas vivências durante a gestação. As perguntas disparadoras buscavam saber: 1- Tempo de atuação na clínica; 2- Há quanto tempo atuava na clínica quando teve a primeira gestação; 3- Quantas gestações teve e o intervalo entre elas; 4- Como se sentiu durante a gestação e que mudanças vivenciou; 5- Como os pacientes notaram a gestação; 6- Quais foram as repercussões da gestação sobre os pacientes; 7- Como os pacientes reagiram ao intervalo da licença-maternidade; 8- Quanto tempo após o parto ocorreu o retorno aos atendimentos; 9- Se todos os pacientes retornaram; 10- Como os pacientes reagiram à retomada das sessões após a licença-maternidade; e 11- Se notou alguma mudança no exercício da clínica após a licença-maternidade.

Foram entrevistadas cinco psicoterapeutas, e cada entrevista durou em média uma hora. Os diálogos foram registrados em áudios de aplicativos, para permitir mais de uma escuta, se fosse necessário. Em um estado de atenção equiflutuante e associação livre, analisamos as entrevistas, a fim de entrar em contato com os múltiplos sentidos, conscientes e inconscientes, e produzir interpretações com base em um trabalho intelectual de reflexão. Por fim, realizamos uma interlocução dos resultados da análise de conteúdo com autores que contribuem, de alguma forma, para o tema. Optamos por identificar as entrevistadas, sempre que necessário, pelo nome de uma flor, a saber: Violeta, Rosa, Gérbera, Margarida e Girassol.

 

Resultados e discussão

 

A partir da escuta e de reflexões sobre os conteúdos emergentes das entrevistas, foi possível captar, transferencialmente, três categorias de sentidos atribuídos às vivências das psicoterapeutas: "Não acredito!"; "Padecer no paraíso"; "Lagartas &  Borboletas".

 

1)    "Não acredito!"

Esta categoria emerge do sentimento de perplexidade dos pacientes ao constatarem que a psicoterapeuta tem uma vida sexual: "Eu percebia, principalmente nos pacientes mais regredidos, que eles ficavam constrangidos com a possibilidade de eu ter feito sexo, ter marido e viver outra vida fora dali" (Violeta). 

Entrar em contato com a subjetividade da psicoterapeuta para além do setting desnuda o princípio da neutralidade proposto por Freud no início da Psicanálise. Para ele, "o tratamento analítico devia ser efetuado, na medida do possível, sob privação - num estado de abstinência" (Freud, 1996 [1919], p.176), para que, a partir da frustração, o paciente seja motivado a mudar, e a satisfação das necessidades poder funcionar como substituto dos sintomas. Atualmente, as discussões sobre neutralidade têm avançado, no sentido de que não é possível colocá-la totalmente em prática, uma vez que, com o passar do tempo, o analista torna-se conhecido para o paciente. Ferenczi antecipou-se a isso quando disse que "os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendências, os humores, as simpatias e antipatias do analista, mesmo quando estão inconscientes disso" (Ferenczi, 1992 [1933], p. 98).

É importante lembrar que, na díade terapêutica, o nosso inconsciente está, também, captando o inconsciente do analisando, havendo, portanto, interferência na produção entre esses dois inconscientes, tal como uma das participantes relatou:

 

"Logo nas primeiras semanas da minha gestação, uma das minhas pacientes relatou que sua menstruação estava atrasada há dois meses. Na dúvida entre manter a neutralidade e desvelar o motivo possível por esse sintoma, disse-lhe que, provavelmente, ela estava captando a minha gravidez. Após a interpretação, ela menstruou imediatamente." (Rosa)

 

A concretização da sexualidade da psicoterapeuta por meio da barriga que cresce bem como o espanto de alguns pacientes configuram-se como elementos importantes ao tema, bastante discutido atualmente: se, por um lado, vivemos uma suposta liberação sexual de nossos tempos, bem como mais discussões sobre o que envolve o feminino, por outro, há o tabu, tal como descreveu a participante Gérbera:

 

"No final da minha gestação, eu estava apresentando o tema de conclusão para a minha pós-graduação em um curso quando, de repente, o professor e os participantes (homens) da plateia redirecionaram a discussão do caso para a minha gravidez e suposta sexualidade. Confesso que senti desconforto por me sentir exposta, depois refleti que a minha gestação estava mobilizando a todos ali também."

 

O esforço para obter maior protagonismo feminino intensificou-se, pelo menos, desde o final do século XIX, a partir das transformações sociais ocorridas. Os movimentos feministas, intensificados nesse período, obtiveram importantes conquistas sociais para as mulheres, porém, nos dias de hoje, ainda existem mobilizações que lutam contra as opressões diárias dos homens sobre as mulheres, arraigadas culturalmente e naturalizadas pelas diferenças biológicas entre o sexo feminino e o masculino (Mota, 2017). Nessas reivindicações, são incluídas as formas de pensar a sexualidade feminina, principalmente pela Psicanálise, que foi, historicamente, a ciência que mais se dedicou a investigar as relações da sexualidade com os fenômenos humanos.

Em seu livro Deslocamentos do feminino, Maria Rita Kehl (2008) debruça-se sobre o tema, sobretudo no que se refere ao olhar da feminilidade pela sociedade e suas repercussões na Psicanálise. Os fundamentos da feminilidade predominantes na Europa e nos países católicos basearam-se em alguns argumentos de Rousseau, segundo a autora:

 

A mulher, que em seu puro estado de natureza pode ser reduzida à força de seu sexo, deve ser especialmente domesticada para que seus desejos ilimitados não destruam a ordem social e familiar. Assim, as qualidades do recato e do pudor e da vergonha não são inatas às mulheres, mas devem ser cuidadosamente cultivadas para servirem de freio a seus desejos, que, à diferença das fêmeas animais, não se reduzem ao ciclo biológico. (Kehl, 2008, p.60)

 

O conflito entre os ideais tradicionais de feminilidade, ao final do século XIX, e as recentes aspirações de algumas mulheres enquanto sujeitos produziram as histéricas do Freud. Na vertente científica, ele foi um dos primeiros a perceber e escutar a crise, ainda inominada, que suas pacientes estavam vivendo, apesar de considerar a sexualidade da mulher, até aquele momento, confusa e de difícil compreensão.

Com base nessas considerações, a psicoterapeuta, antes de tudo, também é uma mulher que vive nesse contexto ambivalente de lutas por protagonismo e limites estabelecidos culturalmente. E, ao se descobrir gestante, precisa lidar com esse contexto, com as suas mudanças biológicas, psicológicas, sociais, bem como o lugar de mãe que lhe é atribuído no setting terapêutico. Desse modo, a perplexidade dos pacientes ao se depararem com tantos detalhes da vida "de mulher" da psicoterapeuta pode ser justificada tanto pela quebra inevitável da neutralidade como da concepção da maternidade santificada, alimentada pela crença cristã baseada na figura de Maria, mãe de Jesus, que concebeu um filho sem ter precisado do ato sexual para tanto, já que o sexo foi considerado por muito tempo como um ato pecaminoso (Maldonado, 1988).

No livro A analista grávida, as autoras refletem que a própria escassez de publicações sobre o tema pode ser um indício de pouco espaço para considerações sobre os desdobramentos da sexualidade feminina (Degnani et al., 2020). Debruçar-se sobre a gestação da psicoterapeuta permite desvelar os impactos em uma relação que busca, principalmente por parte do paciente, um contato mais profundo com seu universo psíquico e emocional por meio da transferência.

 

2)     "Padecer no paraíso"

 

Essa categoria está relacionada ao sentimento de ambivalência vivenciado pela mulher desde o início da gestação. Planejada ou não, o trabalho psíquico diante de tantas mudanças físicas, emocionais e sociais remete ao sentimento do "estranho", primeiramente experenciado pelo corpo, que reage ao óvulo fecundado, provocando enjoos e outros sintomas físicos, e depois, ao longo da vida, conforme o novo ser se apresenta e os sentimentos por ele são metabolizados (Queiroz, 2004).

Todas as participantes relataram suas ambivalências: "Senti-me muito feliz, plena, serena, fortalecida para gestar, me cuidar e cuidar do ambiente. Ao mesmo tempo, tive a percepção de maior fragilidade no corpo. Sempre gostei de me exercitar, mas durante a gestação sentia necessidade de me resguardar" (Margarida). Desse modo, no setting terapêutico, um "terceiro" ingressa na díade psicoterapeuta-paciente, investido por ela numa via ambivalente, mas que redireciona suas catexias para dentro, em um processo de introversão para investimento em seu bebê (Degnani et al., 2020).

Ao que parece, a ambivalência é uma característica principal não só da gestação, mas da vida materna como um todo. A intensidade das mudanças vividas pela mulher aciona mecanismos de defesa, considerados, na maior parte das vezes, como normais. Sobre isto, Soifer afirma que:

O conflito de ambivalências deve-se à intensificação das vivências persecutórias que existem por si mesmas diante da maternidade: são o produto do sentimento de culpa infantil, tanto pelos ataques fantasiados à própria mãe como pelos desejos de ocupar o seu lugar. A vivência persecutória consiste em que alguém possa arrebatar o filho sonhado e demonstrar que se trata de uma fantasia, e não de uma gravidez real; ou ainda, que a gravidez tão desejada implique a perda da própria mãe, por se haver concretizado a fantasia infantil invejosa: ter o filho pela destruição da mãe. (Soifer, 1986, p. 24)

A elaboração desse estado paradoxal, bem como a regressão inevitável devido à ansiedade, sintomas, bem-estar e proteção para o processo de desenvolvimento da mãe e do bebê tornam-se um desafio à psicoterapeuta gestante. Ao mesmo tempo que se configura como um instrumento de técnica, ela é parte do campo analítico, em que permanece atenta aos seus próprios sentimentos, sensações físicas e fantasias durante os atendimentos.

A regressão ao estado mais primitivo pode, inclusive, interferir na função de continência da psicoterapeuta. Rosa relatou que teve uma experiência difícil ao final da gestação do primeiro filho:

 

"Prestes a parir, a minha pressão sempre se elevava. Estava às voltas com esse sintoma e à espera do parto quando uma paciente, que também estava grávida, pediu atendimento, porque seu bebê havia falecido. Não foi fácil sustentar a minha ansiedade e expectativa pela chegada do meu bebê e a tristeza dela por não ter mais o [bebê] dela".

 

Se, por um lado, a analista necessita vivenciar e elaborar o estado mais regredido, por outro, também permanece realizando o mesmo com os pacientes. Por esse motivo, o momento da gestação da psicoterapeuta torna-se fecundo para o amadurecimento de ambos.

 

3)     "Lagartas & Borboletas"

 

A forma com que os pacientes e a psicoterapeuta processam a gestação e a licença-maternidade está presente nessa categoria. Segundo as participantes, os pacientes mais regredidos notavam a gestação mais rapidamente, e de forma inconsciente:

"Sonhei com uma bebezinha... estranho, porque não sou acostumada a conviver com bebês e não conheço ninguém que esteja grávida"(Girassol).Já os pacientes mais organizados psiquicamente percebiam com o aparecimento da barriga: "Alguns me perguntavam se era gestação, outros notavam, mas não comentavam... Provavelmente, para não parecerem indelicados" (Violeta).

Do ponto de vista técnico, a gestação constitui um momento favorável para trabalhar conteúdos transferenciais que, dificilmente, surgiriam em outras circunstâncias. Em um trecho da obra A analista grávida, Degnani e colaboradoras inferem que:

 

A gravidez remete ao enigma da origem, despertando as mais diversas fantasias inconscientes. Inconscientemente, a gravidez pode representar a bem-aventurança da fantasia do retorno à função simbiótica no ventre, anulação de divisibilidades primordiais, ou a produção de uma prova do desejo sexual. O corpo da mulher é a prova da sexualidade viva e colocará em marcha as fantasias mais primitivas do homem. (Degnani et al., 2020, p. 148)

 

Esse trabalho realizado a partir de uma transferência enriquecida constitui um momento satisfatório, principalmente para aqueles pacientes que conseguem sustentar os incômodos das questões despertadas e trabalhá-los no setting. As participantes entrevistadas relataram três momentos importantes em que conteúdos transferenciais profundos apareceram: a constatação da gestação, a aproximação do parto e o retorno da licença-maternidade.

Na constatação da gestação, os pacientes mais regredidos apresentavam mais ataques invejosos, demandas por troca de horário, faltas e até interrompiam o processo psicoterapêutico. Duas das participantes dividiam a atuação clínica em instituições e consultório, e relataram que os pacientes, e até mesmo os funcionários da instituição, se apresentavam, na transferência, de forma mais hostil e pouco continente. Em contrapartida, os de consultório, em sua maioria, apresentaram-se mais tolerantes e cuidadosos.

Com a aproximação do parto, emergia a angústia de separação, de abandono, abordagem de conteúdos mais leves nas sessões, provavelmente como uma forma de preocupação com a saúde da psicoterapeuta e do bebê: "Eu e meu bebê recebíamos muitos presentes. Inclusive um paciente, privado de conviver com seu filho, passou a me trazer um mimo todas as sessões como uma forma de se sentir cuidando dele também" (Violeta).

O retorno da licença-maternidade revelou-se como um momento significativo tanto para os pacientes como para as psicoterapeutas. Segundo elas, boa parte retornou no período combinado, e uma minoria, após um tempo maior. Para ambos, havia um trabalho de reconstrução a ser feito. De todo modo, a constatação era de que não eram mais os mesmos.

Alguns pacientes retornavam mais regredidos e sintomáticos, porém, no decorrer do processo terapêutico, revelavam as melhoras, e outros já se apresentavam mais cuidadosos e amadurecidos:

 

"Uma das minhas pacientes, que era casada e tinha dificuldade para engravidar, interrompeu a terapia assim que notou a minha gestação. Após uns meses do meu retorno ao consultório, ela me procurou novamente, com a notícia de que havia engravidado e queria retomar." (Girassol)

 

Para as psicoterapeutas, a retomada do exercício clínico também foi configurada por intensas mudanças externas e internas, como oferta de dias e horários disponíveis mais reduzida, para que pudessem atender às demandas do bebê. No aspecto positivo, avaliam a capacidade de continência aumentada, mais tolerância com o tempo do outro, capacidade de escuta aprimorada, melhor gestão do tempo e das prioridades, e elaboração da onipotência: "Não tive mais a sensação de controle sobre as coisas. O meu tempo e as demandas passaram a ser divididos com a minha filha" (Margarida). No aspecto que avaliam como negativo, duas delas relataram que se sentem mais culpadas, sobretudo por se sentirem divididas entre querer estar com o filho e trabalhando. Inclusive, uma delas comemorava quando algum paciente desmarcava, porque poderia voltar para casa e ficar mais tempo com os filhos.

A experiência da psicoterapeuta de gestar, parir e tornar-se mãe permite a ela e aos pacientes viverem aquilo que Winnicott dizia sobre a importância do ambiente na constituição do eu. Essas etapas remetem a mãe a um estado de profunda identificação com o bebê:

 

A mãe que desenvolve o estado que chamei de "preocupação materna primária" fornece um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a essa fase inicial da vida. Não é necessário fazer referência à vida pulsional aqui, porque o que estou discutindo tem início antes do estabelecimento de padrões pulsionais. (Winnnicott, 1982 [1956], p. 495)

 

Esse exercício de adaptação às necessidades do bebê, e também do paciente, permite à psicoterapeuta mãe o desenvolvimento de maior continência, tal como as participantes relataram nas entrevistas. A possibilidade de todos elaborarem os conteúdos emergentes do processo da gestação e seus desdobramentos éo próprio ambiente se reconfigurando para que o amadurecimento ocorra.

 

Considerações finais

 

A partir da investigação realizada com as psicoterapeutas que gestaram, foi possível concluir que esse momento peculiar da vida da mulher (psicoterapeuta) se configura de modo fecundo tanto para ela como para os pacientes.

Administrar as mudanças físicas, biológicas, psicológicas e sociais, bem como a técnica no setting demanda um grande esforço tanto por parte da analista, por se ver lançada em um mar de demandas e impulsionada a criar continência para tanto, como por parte dos pacientes, que vivenciam um estado mais primitivo, propício à emergência de conteúdos inimagináveis em condições "normais".

Para que a psicoterapeuta consiga continuar oferecendo um ambiente que se adeque às necessidades dos pacientes, é necessário que ela também receba provisão, como análise, supervisão e outros cuidados possíveis nesse momento demandante. De todo modo, se ambos conseguem sustentar e elaborar as repercussões dessa experiência, um processo de transformação e amadurecimento pode ser alcançado. 


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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Aline Vilarinho Montezi
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Pesquisadora colaboradora do Grupo Apoiar – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Doutora em Psicologia Clínica Psicanalítica – USP. Mestre em Psicologia como Ciência e Profissão – PUC-Campinas. Especialista em Psicoterapia Breve Psicanalítica – Unicamp. Psicóloga clínica em consultório particular.

• Bruna Ceruti Quintanilha
Subsecretaria de Políticas sobre Drogas do Estado de Minas Gerais

Psicóloga clínica e Analista de gestão em políticas públicas em desenvolvimento pela Subsecretaria de Políticas sobre Drogas do Estado de Minas Gerais. Doutora em Psicologia e Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Espírito Santo.

Notas

Referências bibliográficas

BLEGER, J. (1963). Psicologia da conduta. Porto Alegre: Artes Médicas,1984.

BRAULINO, J. F. O desenvolvimento do psicoterapeuta: contributos da vida pessoal e da experiência profissional. 2018. 168 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Instituto ou Faculdade de Psicologia, Universidade de Évora, Portugal, 2018.

DEGNANI, R. et al. A analista grávida. Porto Alegre: Artes e Ecos, 2020.

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