ARTIGOS

“Bolinhas na pele”: Somatização na adolescência durante a pandemia de COVID-19


"Sjin blisters": Somatization in adolescence during the COVID-19 pandemic
Amanda Ribeiro Alves Barbosa
Hilda Rosa Capelão Avoglia

RESUMO
Os conflitos psíquicos são inerentes à condição humana, todavia, sua manifestação ocorre de forma subjetiva em cada indivíduo. Na clínica psicanalítica, os sintomas corporais são observados desde Freud, tornando-se objeto de estudo não apenas da ciência psicológica, mas também da medicina. O presente trabalho tem como objetivo analisar as manifestações somáticas de um adolescente durante a pandemia de Covid-19. Trata-se de um estudo de caso clínico envolvendo um adolescente que procurou atendimento em um serviço de plantão psicológico gratuito, apresentando como queixa erupções avermelhadas na pele, que lhe causavam forte ardência. A análise do caso foi amparada por autores clássicos e contemporâneos da psicanálise. Verificou-se que tais erupções faziam parte de angústias não elaboradas que vieram à tona em meio à situação de crise imposta pelo isolamento social na pandemia.

Palavras-chave: Psicossomática, Adolescência, Pandemia

ABSTRACT
Psychic conflicts are inherent to the human condition; however, their manifestation occurs subjectively in each individual. In the psychoanalytic clinic, bodily symptoms have been observed since Freud, becoming an object of study not only in psychological science, but also in medicine. The present work aims to analyze the somatic manifestations of an adolescent during the Covid-19 pandemic. This is a clinical case study involving a teenager who sought care at a free psychological on-call service, complaining of red rashes on his skin, which caused severe burning. The case analysis was supported by classic and contemporary psychoanalytic authors. It was found that such eruptions were part of unelaborated anxieties that came to the surface amid the crisis situation imposed by social isolation during the pandemic.

Keywords: Psychosomatics, Adolescence, Pandemia.


Introdução

 

Há uma parcela considerável de sinais e sintomas corporais originados das angústias, como manifestações daquilo que, internamente, se apresenta como algo difícil de suportar. A ciência que contribui para a compreensão dessas manifestações é a Psicossomática, na qual se articulam a Medicina e a Psicologia. Eksterman (2010) argumenta que, dentre as diversas correntes da Psicologia, a Psicanálise contribui significativamente para a compreensão desta ciência por parte de médicos e psicólogos.

Desta forma, Eksterman salienta que "a psicanálise descobriu para a prática médica e para a patogenia o valor da palavra e operacionalizou sua função na terapêutica,  desenvolveu, a partir dessas descobertas, teorias e técnicas para utilizar essa transformação com fins terapêuticos" (Eksterman, 2010, p. 40). Diante disso, a compreensão do caso presente neste artigo ampara-se na corrente psicanalítica para sua elucidação.

Em Estudos sobre a histeria, Freud e Breuer (2016 [1893-1895]) postulam que o sofrimento psíquico não elaborado se torna um corpo estranho no psiquismo, podendo atuar como um sintoma físico no indivíduo. Situações nas quais se é exposto a afetos de pavor, vergonha, angústia ou dor podem ocasionar um sofrimento que, mais tarde, se pronunciará externamente no corpo.

O conflito psíquico que ocasiona a manifestação corporal pode ser gerado por diversos eventos ao longo da vida, contudo, Freud e Breuer (2016 [1893-1895]) afirmam que, comumente, os acontecimentos da infância tendem a gerar o fenômeno patológico e perdurar por longos anos. Em alguns casos, a relação entre o evento desencadeador e o fenômeno patológico pode ser de fácil identificação em psicoterapia, como no exemplo citado pelos autores, em que a lembrança de um afeto doloroso surge durante uma refeição, mas é imediatamente reprimida, e, a partir disso, náuseas e vômitos acontecem. Todavia, em outros casos, a conexão pode não ser tão direta, sendo necessário compreender a relação simbólica entre o evento desencadeador e o fenômeno psicopatológico. Nesse sentido, Freud e Breuer (2016 [1893-1895]) postulam que a lembrança do que ocasionou os sintomas e sua catarse seriam o caminho para a cura.

A psicanálise torna-se, então, uma importante estrutura para a compreensão da dimensão simbólica do indivíduo no que tange à geração de doenças. Para Eksterman (2010), a psicossomática deve ser compreendida a partir da integração de três importantes perspectivas: a doença, com sua dimensão psicológica; a relação do profissional com o paciente, com seus múltiplos desdobramentos; e a ação terapêutica voltada para a pessoa do paciente, sendo este entendido como um ser biopsicossocial. Desta forma, compreende-se, a partir da psicossomática, que as reações do indivíduo são parte de um todo complexo, sendo esta interligação essencial para o entendimento do processo de saúde e doença, ou seja, como explica o referido autor, a psicossomática agrega uma nova visão sobre a doença e o doente.

Na manifestação psicossomática está embutido um acontecimento, uma mudança nas relações com alguém ou com o ambiente, uma mudança imaginária ou fantasiosa que funciona como desencadeadora para tal eclosão. As somatizações acontecem, primordialmente, pelo recalcamento e expressam um discurso para a manutenção psíquica do indivíduo, evitando uma invasão da angústia (Santos Filho, 2010). Entretanto, tais ocorrências deixam rastros, que, se forem seguidos corretamente pelo analista, possibilitam encontrar sentidos e, à medida que forem expostos ao paciente através da técnica psicanalítica, podem libertá-lo dos sintomas.

Dentre a diversidade de manifestações psicossomáticas, identificam-se as manifestações na pele; Fontes Neto et al. (2006) postulam que a dermatite atópica é caracterizada por erupções na pele que causam coceira de intensidade variada. Os autores salientam que esse tipo de dermatite é comumente encontrado em crianças, e que a intensidade e o desconforto ocasionados pelos sintomas podem resultar em implicações na vida não só dos pacientes, mas também dos familiares, causando dificuldades nas relações interpessoais.

Durante a manifestação psicossomática, as funções corporais reagem psiquicamente diante de conflitos que são percebidos como biologicamente ameaçadores, como se houvesse substâncias tóxicas que obrigassem o corpo a reagir. Embora a eclosão de um sintoma somático no corpo possa representar um risco para o indivíduo, ela também cumpre a função protetora para um dano psíquico, uma vez que o indivíduo está diante de um conteúdo extremamente ameaçador, lançado para fora do inconsciente como uma resposta pré-simbólica, a fim de protegê-lo de angústias que seriam insuportáveis caso ele tivesse um contato consciente, já que, nesse estágio, não há possibilidade de elaboração saudável, conforme explica McDougall (2000).

Anzieu (2000) destaca a importância da pele, enfatizando que não se trata somente de um órgão, mas sim de um sistema que conecta os sentidos externos e internos do indivíduo. Assim, o autor descreve a pele como uma sensível camada protetora dos estímulos que recebemos, sejam estes excitantes ou angustiantes. Todavia, na mesma medida em que cumpre tal função protetora, a pele é capaz de revelar, a partir de suas cicatrizes, coloração ou textura, os possíveis danos causados por estímulos provenientes de ordem externa ou interna, expondo ao olho nu as fragilidades a que aquele indivíduo foi exposto.

Sobre as funções psicológicas da pele, Anzieu (2000) descreve três funções essenciais: como bolsa que armazena o que há de bom e de pleno, a partir dos cuidados; como limite para o exterior, uma barreira protetora contra as agressões vindas de seres ou objetos; e, por fim, como uma comunicação primária com os outros, para o estabelecimento de relações e o lugar em que tais relações são inscritas. 

Diante da importância dessa grande casa biológica que a pele representa, Anzieu (2000) propõe que os psicanalistas se interessem mais pelos fenômenos envolvendo esse órgão, trazendo observações importantes da clínica psicanalítica, como a interpretação de que alguns pacientes que vivenciam um falso self podem perceber partes de seu corpo com estranheza. Além disso, elucida sobre o retorno da agressividade ao corpo no ato de arranhar-se, enfatizando que tais agressões ao corpo destinadas à pele são tentativas perigosas de manter os limites entre o corpo e o eu, uma vez que esse movimento agressivo contra sua pele pode representar uma tentativa de restabelecer a sensação de estar intacto novamente diante de um eu completamente abalado e sem recursos suficientes para a sobrevivência.

As manifestações psicossomáticas podem ocorrer em todas as etapas da vida, entretanto, na adolescência, que representa um momento de difícil passagem, comumente identificam-se conflitos a serem enfrentados, uma vez que o indivíduo defronta-se com o desconhecido, tentando equilibrar-se entre o mundo infantil e o mundo adulto. Nesse sentido, para este artigo, optou-se por compreender um caso de somatização nesse período, marcado por tantos desafios.

Nasio (2011) refere-se a esse período como "neurose saudável da adolescência", pois, nesse momento da vida, o indivíduo precisa lidar com um conflito psíquico resultante das exigências pulsionais e sociais. Tais exigências são introjetadas e autoimpostas sob a direção do supereu. O adolescente, ainda imaturo em seu desenvolvimento, depara-se com a difícil e angustiante tarefa de conciliar as duas exigências (pulsionais e sociais), o que gera sentimentos contraditórios sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca (Nasio, 2011). 

Aberastury (1981) salienta que as modificações corporais presentes na adolescência exigem uma repentina mudança de papel frente ao mundo externo, para atender às expectativas desse mundo externo. Tal exigência é vivenciada como uma invasão da personalidade construída até aquele momento. Assim, refugiar-se em seu mundo interno representa uma reação para revisitar os aspectos do passado e enfrentar as exigências do presente.

As identificações com os pais, professores e demais figuras foram responsáveis pela construção do mundo interno durante a infância. Esse mundo interno será o promotor da ponte para ligar-se ao novo mundo externo, que a mudança de posição, de criança para adolescente, exigirá. Todavia, o adolescente assumirá uma atitude crítica, uma vez que estará em busca de sua identidade e, nessa busca, será tomado pelo luto pela infância e pelos pais da infância (Aberastury, 1981).

Diante dessas considerações, este estudo tem como objetivo compreender as manifestações somáticas e sua relação simbólica com a história de vida de um adolescente durante a pandemia de Covid-19.

 

Metodologia

 

Trata-se de um estudo de caso com uso de método clínico, envolvendo um adolescente que buscou ajuda psicológica em um plantão psicológico, oferecido a partir de um projeto[1] de pesquisa e extensão desenvolvido para atendimento à população que sofria os efeitos da pandemia.

Os atendimentos do plantão foram realizados semanalmente, totalizando nove sessões, em ambiente virtual, sendo um encontro com a mãe. Por questões éticas, a identidade do participante será preservada, sendo atribuído a ele o nome fictício de João, para assegurar o sigilo do caso.

 

Conhecendo João

 

João é um adolescente de 16 anos, reside com os pais e é o mais velho de dois filhos. Sua rotina é baseada em escola regular pela manhã, trabalho de tarde e curso de idiomas. Ele relata orgulhar-se da rotina agitada, apontando a ausência dessa rotina como uma de suas principais dificuldades experimentadas no período de quarentena, devido à pandemia.

A queixa principal de João refere-se ao que ele chama de "bolinhas" que aparecem em seu corpo durante o dia. Segundo ele, essas "bolinhas" ardem e coçam com grande intensidade, além de deixarem marcas de manchas vermelhas em seu corpo. As tais "bolinhas" manifestam-se por todo o corpo do menino, que afirma terem surgido após o início do isolamento social, que se fez necessário devido à pandemia. João alega que não há nada que lhe traga alívio dos sintomas, afirmando que apenas espera que elas sumam, "mas enquanto elas estão em meu corpo, a ardência e a coceira são muito intensas".

A mãe relata que, na infância, João precisou de atendimento psicológico, visto ter o hábito de roer as unhas. Segundo ela, isso ocorria por mostrar-se muito ansioso. No entanto, após o tratamento com psicoterapia, esse hábito desapareceu. Além disso, ela relata que sempre achou o filho muito agitado, e que, desde os 13 anos, ele pedia para começar a trabalhar e desenvolver sua independência. Sobre a gravidez, a mãe informa que o filho foi planejado desde o início do casamento. Ela e o marido se prepararam financeiramente para a chegada de João. A mãe relata que a gravidez foi tranquila, sem complicações, e que a infância de João foi tranquila, o que, posteriormente, foi confirmado pelo próprio paciente.

Durante os atendimentos, João enfatiza sua expectativa e ansiedade pelo final de semana, pois podia sair com seus amigos e percebia que essa oportunidade era uma recompensa diante do esforço dos dias trabalhados. Com o isolamento social e a recomendação para não sair de casa, ele diz que "os dias perderam o sentido, pois todos eles parecem iguais".

João diz que a "doutora", forma como se refere à psicóloga que o atende, é a única pessoa que pode ajudá-lo nesse momento, pois tem certeza de que sua queixa "tem causa emocional". No primeiro atendimento, João relata sentir-se muito angustiado e preocupado com as "bolinhas" que surgiram em sua pele; pensa em como seria caso nunca sumissem de seu corpo, e, então, estaria impedido de retomar suas atividades habituais; diz sentir vergonha diante do que estava acontecendo.

A angústia toma conta dos pensamentos do adolescente, de modo que, durante os primeiros atendimentos psicológicos, ele mostra-se indisponível para conversar com maior profundidade sobre seus sentimentos ou a respeito de outras questões de sua vida. Constantemente, repete para a psicóloga que o foco estava em "fazer com que as bolinhas desaparecessem", e que ela era a única pessoa que poderia ajudá-lo com isso, visto já ter realizado exames de sangue sem obter nenhum diagnóstico:

 

"Olha, doutora, tá tudo bem na escola e em casa, a única coisa que me incomoda mesmo são essas bolinhas, que ardem muito. Como vou trabalhar e ir para a escola desse jeito? Não vou poder fazer o que eu fazia antes. Só quero uma maneira de me livrar delas, e só você pode me ajudar." 

 

A partir das intervenções da psicóloga, João começa a relatar em quais locais e momentos as "bolinhas" apareceram e, nesse relato, dá-se conta de que eram situações e locais que antes lhe davam prazer, como durante pequenos passeios na rua com a família, ao praticar atividade física, ao ver amigos e conhecidos caminhando pela rua.

Na sessão seguinte a essa reflexão, João diz que saiu de carro com sua família e as "bolinhas" não apareceram, mas um pequeno imprevisto durante o passeio o deixou assustado: "Uma moto derrapou do lado do nosso carro, eu tive a impressão de que ela havia batido no carro, mas não bateu. Na hora, meu corpo inteiro ardeu, me senti estressado com a situação, as bolinhas não apareceram, mas a sensação foi a mesma".

João descreve uma tensão intensa e diz que apenas esperou que as "bolinhas" aparecessem. Apesar de isso não ter acontecido, a sensação de que elas estavam lá foi muito forte. Nas sessões seguintes, o adolescente explica que, durante a quarentena, os dias não têm sentido e a vida também não; afirma que se sente estressado em pensar no trabalho que está parado, na escola que é nova (havia ingressado em uma nova escola no início do semestre) e nem pôde conhecê-la da forma como gostaria. Conclui que não vê sentido em nada do que vivencia atualmente. 

Diante desse recorte clínico, é possível compreender que havia uma ausência de sentido e grande preocupação sobre seu futuro, considerando a instabilidade que o momento de crise, como a pandemia, provocou em sua vida. Ele utilizava suas defesas, na medida em que resistia, no início dos atendimentos, a explorar como estava sendo afetado por tamanha instabilidade, recusando-se a relatar seus sentimentos com maior profundidade, como se estivesse se protegendo de tais pensamentos angustiantes.   

"Doutora, me sinto como uma garrafa de água que foi enchendo e agora tá cheia demais e está transbordando." Com essa frase, o adolescente parece explicitar o que está acontecendo com seu corpo. Galdi e Campos (2017) defendem que, em casos clínicos desse tipo, há uma impossibilidade de utilizar o mecanismo de simbolização, fazendo com que haja a eclosão de uma doença. Entretanto, conforme afirma Santos Filho (2010), o recalcado faz-se presente através do sintoma, deixando rastros que somente um interlocutor capacitado é capaz de compreender e formar um sentido claro, favorecendo a relação simbólica. Considerando tal afirmação, a fala de João representa a possibilidade de um início no processo de simbolização, que estava adormecido, sendo utilizado como recurso para acessar os sentimentos de João nas sessões seguintes, mostrando a necessidade de encontrar uma maneira de "esvaziar sua garrafa de água", evitando o transbordamento. 

Nas últimas sessões, João apresenta-se muito feliz, contando que, a cada dia, as "bolinhas" estavam desaparecendo de sua pele. Anteriormente, as erupções eram diárias e por todo o seu corpo, mas, na medida em que as sessões avançavam, as "bolinhas", pouco a pouco, diminuíram a frequência e a intensidade com que apareciam: "Antes elas estavam pelo corpo todo, agora elas estão só na perna; parece que elas foram descendo, começaram a sumir do peito, depois da barriga, dos braços, das mãos, e agora já estão na perna" (sic).

O adolescente retoma as atividades físicas no espaço do condomínio onde mora, mas estabelece um dia e um horário no qual relata sentir-se mais "relaxado", após o atendimento psicológico.

Para João, à medida que as "bolinhas" somem, o sentido aparece. As sessões com João encerram-se quando ele afirma à "doutora" que já encontra sentido em sua rotina, consegue planejar algumas atividades possíveis de serem efetivadas no período de isolamento social e vem se sentindo cada vez menos estressado.

 

Discussão

 

No caso relatado, percebe-se que o corpo ou, mais especificamente, a pele funciona como uma fronteira entre o mundo interno e o externo. Anzieu (2000) compreende que a pele pode fornecer um equilíbrio para o mundo interno diante das perturbações que vêm de fora, do exterior, todavia, em suas cicatrizes e formas de existência, ela conserva as marcas das perturbações filtradas. Assim, aquilo que é esperado que ela conserve (o mundo interno) parece emergir por suas mensagens não verbais, que, neste caso, são representadas pelas "bolinhas" na pele de João.

O início do processo de atendimento foi marcado por intensa resistência por parte do paciente em contatar seus sentimentos, que, para ele, não estavam relacionados com aquilo que buscava eliminar. Essa resistência pode ser entendida como fruto de um elevado nível de angústia desencadeada pelas manifestações em sua pele, que lhe causavam dores físicas, além de limitações em sua rotina, conforme ele mesmo descreve durante os atendimentos. Conforme destaca McDougall, "as experiências ansiogênicas, por um momento mobilizadas, não puderam dar origem a uma representação mental verbal" (McDougall, 2000, p. 69), assim, essa ansiedade se expressa na pele, mas também em forma de resistência.

A figura da psicóloga representava a autoridade capaz de dar continência para aquilo com que João não conseguia lidar. Destaca-se a maneira como o próprio paciente convocava a "doutora" durante os atendimentos, atribuindo a ela a única possibilidade de ajudá-lo. Dessa forma, mostrar ao paciente, a partir de exames laboratoriais que ele mesmo relata ter feito, que, biologicamente, parecia não haver nada de errado com ele, foi um recurso importante para demonstrar a necessidade de acessar conteúdos psíquicos, de forma a encontrar alguns sentidos para além do concreto, pois, como foi dito por Freud e Breuer (2016 [1893-1895]), "recordar sem afeto é quase sempre ineficaz".

Não é incomum que haja apenas um grande precedente para os sintomas corporais, todavia, também ocorre de precedentes de menor escala se agruparem no psiquismo e se manifestarem, como articulam Freud e Breuer (2016 [1893-1895]). Além disso, um grande evento estressor também pode trazer à tona sofrimentos que antes estavam reprimidos.

Na história de vida de João, essa não é a primeira manifestação corporal de suas emoções. O adolescente já esteve em processo de psicoterapia devido ao comportamento de roer as unhas na infância, que indicava ansiedade elevada, conforme relato da mãe. Além disso, o isolamento significou uma situação de impedimento diante da rotina diária, gerando ansiedade frente à ameaça de adoecimento e ao medo de nunca mais retomar as suas atividades, temor diante do afastamento das relações interpessoais tão importantes, em especial, na fase do desenvolvimento em que ele se encontrava.

Durante a entrevista com a mãe, ela ressaltou que João sempre demonstrou desejo de ser independente, por isso, começou a trabalhar aos 15 anos de idade. O trabalho do menino sempre era abordado durante os atendimentos como algo importante e representativo de seu desejo de independência, considerado como um marco da transição do mundo infantil para o adulto. O fato de permanecer em casa gerava angústia e, inclusive, destaca-se sua fala sobre o quanto era recompensador fazer planos para sair com os amigos, assim que a pandemia acabasse, mas se preocupava se as "bolinhas" ainda estariam lá.

Anzieu (2000) considera que a pele recebe um grande investimento de cuidados, uma vez que ela reflete, aos olhos dos outros, nossa condição de saúde. Nesse sentido, na fantasia de João, as manifestações corporais, extremamente visíveis aos olhos dos outros, pareciam significar a impossibilidade de retomar contatos e relações interpessoais, que, por sua vez, eram dotadas de grande investimento libidinal.

O adolescente, por fim, representa seu corpo, simbolicamente, por uma garrafa de água. A água que transborda em forma de bolhas associa-se às angústias geradas por sentimentos, relações e outras situações que, ao longo de sua história, não puderam ser absorvidas de outra maneira e ultrapassaram o limite que esse recipiente foi preparado para sustentar.

 

Considerações finais

 

A rotina do dia a dia funciona, muitas vezes, com uma espécie de curativo para as feridas colecionadas ao longo da vida. Todavia, a pandemia parece ter destampado essas feridas, expondo-as diante de um espelho, possibilitando enxergar, de uma forma ou de outra, todas essas cicatrizes. E assim parece ter acontecido com esse adolescente.

A análise desse caso aponta para a compreensão de que as erupções na pele do paciente são manifestações corporais representativas de seus sentimentos, emoções que não encontram caminho para uma elaboração mais saudável, pois, como afirma Santos Filho (2010), os pacientes psicossomáticos possuem uma carência de elaboração psíquica, que acarreta uma falha na simbolização, uma vez que a eclosão somática possui caráter de descarga, ou seja, como se o conteúdo que fora recalcado "vazasse", e, neste caso, a pele é a receptora que externaliza aquilo que foi impossível simbolizar.

É certo que João encerra os atendimentos com questões internas a serem trabalhadas em um processo de psicoterapia. No entanto, é importante considerar como o serviço de plantão psicológico foi fundamental, embora não suficiente para desencadear a compreensão de João sobre como seu mundo interno pode influenciar diretamente sua vida, passando a considerar outras possibilidades de enfrentamento de seus penosos sintomas advindos de suas "bolinhas" e, assim, reconhecendo outra dimensão de seu bem-estar e saúde mental.

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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Amanda Ribeiro Alves Barbosa
Instituto Brasileiro de Psicanálise

Psicóloga clínica. Pós-graduada em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCMSCSP). Formação em Psicanálise pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise. E-mail: amanda.ralves@yahoo.com.br

• Hilda Rosa Capelão Avoglia
Universidade Metodista de São Paulo e Universidade Católica de Santos

Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos. E-mail: hildaavoglia@metodista.br


Notas


[1] Projeto Mosaico - Pesquisa e Atenção à Vulnerabilidade na Infância, desenvolvido pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo, sob coordenação da Profa. Dra. Hilda Rosa Capelão Avoglia.

Referências bibliográficas

ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.

ANZIEU, D. O Eu-pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

EKSTERMAN, A. Medicina psicossomática no Brasil. In: MELLO FILHO, J. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

FONTES NETO, P. T. L. et al. A dermatite atópica na criança: uma visão psicossomática. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, v. 28, n. 1, p. 78-82, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br. Acesso em: 3 abr. 2023.

FREUD. S.; BREUER, J. Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos. In: FREUD, S.; BREUER. J. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

GALDI, M.; CAMPOS, B. Modelos teóricos em Psicossomática Psicanalítica: Uma revisão. Trends in Psychology, v. 25, n. 1, p. 29-40, 2017.

MCDOUGALL, J. Teatros no corpo: o psicossoma em psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

NASIO, J. D. Como agir com um adolescente difícil? Um livro para pais e profissionais. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

SANTOS FILHO, O. C. S. A psicossomática: o diálogo entre a psicanálise e a medicina. In: MELLO FILHO, J. Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

 

 


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