RESENHA

Uma reflexão sobre o percurso de existir

Dandara Ferreira


CALLIGARIS, Contardo.

O sentido da vida.

São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.

Dandara Ferreira[1]

Universidade do Estado de São Paulo - Unesp

 

 

Uma reflexão sobre o percurso de existir

 

- Oi, tudo bem?

- Não sei. Realmente não sei. Como é que eu vou saber se está tudo efetivamente bem?

Um diálogo representativo para iniciar esta resenha, já que essa era a forma como Contardo Calligaris respondia a essa pergunta tão trivial e complexa, adotada como saudação em nossa língua portuguesa. E é justamente com base nesse exemplo que ele discorre a sua reflexão a respeito do que é a vida e do lugar que a felicidade tem ocupado na atualidade enquanto valor cultural.

A leitura do livro, que talvez seja um marco na escrita de Calligaris, parece nos levar a uma íntima conversa com ele, como se estivéssemos sentados em uma cafeteria, sem pretensão de chegar a um lugar ou conclusão, apenas refletir e divagar sobre os buracos que nos tornam humanos, e onde podemos nos ancorar para não despencar da vida. Para Calligaris, não se trata de encontrar uma resposta para o viver, mas, sim, de degustar a experiência, a escrita, as reflexões e as histórias, digerindo-as cada um à sua maneira.

Apesar de a leitura ser leve e de fácil compreensão, o texto não economiza nas referências, que vão desde possíveis articulações com operadores teóricos centrais da psicanálise, a exemplo de falta, desejo e gozo, ao uso de conceitos outros, como ética e estética, para Kierkegaard; o hedonismo, para Aristipo de Cirene; e o amor, para Petrarca.       

Já no início, ele contextualiza o porquê do livro: falar sobre felicidade tornou-se o seu carma,[2] em decorrência de uma fala sua em uma entrevista, alegando não se preocupar muito em ser feliz. Desde então, ele diz: "sou condenado a falar dessa questão - ou seja, do que seria, então, a felicidade - e da importância que ela teria (ou não) para mim" (p. 21). E é um tanto por essa razão a escrita de seu livro O sentido da vida, publicado postumamente, com prefácio escrito por seu filho, Max Calligaris.

A escrita é solta e fluida, talvez noticiando já do que se trata, para ele, a experiência de existir. Melhor dizendo, o livro parece uma representação do conteúdo que carrega. Assim como diz Antônio Machado (2003), "caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar", o sentido da vida, para Calligaris, consiste em experienciá-la como um projeto a que damos atenção, uma experiência da qual se desfruta, mesmo que, em alguns momentos, esse projeto não se desenrole tal como o imaginamos. Inclusive, um dos principais objetivos do autor é mostrar como o simples pode ser extraordinário, ou ainda, que a busca pelo extraordinário pode ser um entrave para o viver.

No decorrer da narrativa, ele se vale de diversos exemplos históricos, artísticos e pessoais, e os enuncia a partir da expressão "isso é muito interessante", independentemente do conteúdo desses exemplos e dos enredos contados. Isso nos faz pensar que, para além do conteúdo, a forma como se constrói um raconto é o que o torna fascinante - e onde está o seu valor. Inclusive, essa parece ser uma das teses centrais do texto: a vida é interessante proporcionalmente à nossa capacidade de contar sobre ela. 

Em outras palavras, ele diz que a qualidade da experiência não deveria ser medida a partir do ponto de vista dos acontecimentos que, aparentemente, são ou não extraordinários, mas sim da possibilidade de essa vivência ser experienciada em seu conteúdo. Com essa ideia, ele lança mais um ponto central do livro: a vida interessante é aquela em cujos detalhes podemos prestar atenção. Seja nos acontecimentos banais, feios ou belos - todas as experiências merecem ser vividas com atenção.

Contudo, essa ótica caminha justamente na contramão de como a atualidade tem se relacionado com a vida, a exemplo da patologização dos afetos que acompanhamos, em que toda emoção parece ser facilmente categorizada, impossibilitando as pessoas de dar a devida atenção àquilo que as atravessa. Por isso, ainda que de forma sutil e talvez não intencional, o livro também é uma forma de crítica ao modo de funcionamento contemporâneo - e a língua espanhola nos ajuda a entender isso. Em espanhol, "experiência" significa lo que nos pasa. Ou seja, algo da ordem daquilo que nos atravessa e as sutilezas implicadas. 

A exemplo disso, ele comenta a importância em se autorizar à experiência de um luto, contando sobre a época em que clinicava em Nova York. Nessa época, o assunto do momento era o Prozac, e, comumente, as pessoas chegavam aos consultórios médicos pedindo pela prescrição do antidepressivo como precaução contra a dor. Com medo de sentir a dor do luto em decorrência da morte de um pai, por exemplo, criou-se a idealização de que o antidepressivo resolveria tal problema. Ele, então, objeta acentuadamente por que não se deve fugir da experiência de perder um pai:

 

a morte do seu pai vai acontecer só uma vez, e é uma experiência crucial na sua vida. É crucial no viver humano perder a geração que nos precedeu, então você vai ficar triste, vai chorar... o luto pode durar de seis meses a um ano, sim, e isso não tem nada de patológico. Faz parte da vida. Como você não quer viver uma coisa tão importante e significativa? Você tem uma vida só, e nela você só tem uma morte de seu pai. A qualidade da sua experiência não é definida quando você pode ficar sorrindo do começo ao fim não; todas as experiências são "interessantes". [...] um pouco do que chamo de uma vida interessante. Uma vida em que você se autoriza a viver intensamente. Autoriza-se a viver com toda a intensidade que todos os momentos da nossa vida merecem. (p. 35)

 

Sabemos que passar por algumas experiências de perda é arrebatador. Arrebata mesmo. Quando perdemos algo ou alguém que nos é caro, uma parte de nós também se perde, também morre. Entretanto, salvo casos graves de melancolia, a morte dá lugar ao nascimento de outra coisa, uma vez que o sujeito está sempre se havendo com a construção de novos arranjos para a sua existência. A cada perda nos tornamos outro, e o princípio de autopreservação nos ajuda com isso: é preciso fazer algo a partir do que nos aconteceu. E é nisso que se tece uma vida.

Assim, para ele, a busca por uma vida extraordinariamente feliz pode atrapalhar a própria qualidade da experiência de ser. A busca por uma vida que se destaque das outras pode nos levar à desatenção das pequenas coisas, que, em última instância, são as que importam. Assim, como diz Saleme (2008), "a vida é um grande sertão, mas tem veredas, e a vereda é o outro".

Dessa forma, Calligaris faz um convite ousado ao nos colocar diante de reflexões acerca das experiências de morte e luto, com as quais, inevitavelmente, cruzaremos no decorrer do caminho, argumentando que passar por isso também é viver. Trata-se, assim, do percurso e das adversidades nele contidas, o que, aparentemente, ele vem dizendo esse tempo todo: viver contém felicidade, mas a experiência de existir não se sustenta apenas em se sentir feliz.  

Nessa perspectiva, preocupar-se com a felicidade, fugindo de experiências desagradáveis, está fadado ao fracasso. Pois, assim como já nos alertou Freud (1914 e 1920), a psique é mais complexa do que apenas a busca por satisfação.

Nesse sentido, é possível dizer que o livro se assemelha a um percurso de análise, não só pelos diversos conceitos psicanalíticos presentes, mas também pela forma como a narrativa é construída. Afinal, não seria o percurso de análise, em última instância, a narrativa de como um sujeito se articula com os seus buracos e faz o luto de suas perdas?

Em um diálogo muito interessante que teve com o seu pai quando criança, Calligaris conta o que lhe ficou como marca da fala do pai:

 

Por mais que haja livros, por mais que a gente leia ou escreva, sempre haverá buracos nas estantes, e, aliás, é importante que a biblioteca tenha buracos nas estantes. [...] Há livros que são escritos para tapar os buracos da estante, e há livros que são escritos para preservar os buracos na estante. (p. 81)

 

Com essa imagem, ele busca produzir um furo na fantasia narcísica de completude, assinalando a importância da preservação de alguns desses espaços. E isso se apresenta de forma ilustrada quando fala sobre certo saber presente no hedonismo, dizendo que:

 

Nenhum hedonista visita o Louvre num dia - nem em três, aliás. A gente deveria entrar nos museus decidido a ver no máximo três quadros; é preciso fazer o luto dos outros. [...] ninguém aprecia mais do que três obras de arte na mesma tarde, simplesmente porque ninguém presta atenção em mais de três obras na mesma tarde. (p. 115) 

 

A ideia é de que existe uma dimensão de falta na qual estamos todos inscritos, e recusá-la tende a culminar mais em sofrimento do que em satisfação. Ao invés de ajudar, essa exigência invade, arrebata e acusa, sem diálogos, os furos do sujeito em formato de inquietude - como se fosse possível alguém ser completo e, se não o é, o problema está nele. O que pode levar o sujeito a um equívoco sobre si, como se estivesse em débito com o ideal de performance na existência.

Bem, a questão do livro não é discorrer sobre a constituição dos sujeitos e suas angústias em pormenores; na verdade, ele apenas menciona isso, a fim de dizer que se ocupar dessa preocupação (embora tenha o seu lugar de importância) pode ser uma distração da vida concreta, que já está acontecendo. E parece que essa foi uma significativa lição aprendida com o seu pai, uma vez que o intuito, diferentemente de buscar preencher o mundo de sentido ou explicações, é viver apesar disso. "Sem aflição excessiva pela falta de respostas satisfatórias, seria interessante percorrer com alegria o emaranhado de caminhos pelos quais a gente delimita os buracos na nossa estante." (p. 85)

"Qual é o sentido da vida?" é uma pergunta complexa, que qualquer pessoa que fure, minimamente, o roteiro cotidiano de seus afazeres atribulados se verá fazendo. Parar para pensar é coisa séria, porque é nesse jejum que se dá a dimensão da falta e, por conseguinte, do desejo e sua possível articulação e enlace com o factível. Assim, como diz Clarice Lispector:

 

Da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve. A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim. (Lispector, 1977 [1920], p. 20)

 

No entanto, precisamos nos antecipar em dizer que essas ideias não se articulam como um manual, como se viver fosse água com açúcar se nos autorizarmos aos atravessamentos das experiências cotidianas. Não. O que ele diz, na verdade, é que viver é água viva: pode ser bonito, mas, às vezes, queima. E é nas sutilezas do cotidiano que moram os enroscos - e as virtudes também.

Por outro lado, o discurso contemporâneo do imperativo da felicidade é antagônico a esses pressupostos, atravessando-nos e atrapalhando-nos, uma vez que, a partir dele, a singularidade das experiências individuais é sequestrada por um autoritarismo que acelera: tempo é dinheiro, e afetar-se é desvantajoso. Então, quando a lógica é a de que os afetos desagradáveis devem ser evitados, a ânsia está em se esquivar de qualquer experiência que não seja da ordem da satisfação. O sujeito experimenta, de forma alienada, o vício pelos prazeres imediatos, que não são, necessariamente, articulados aos seus desejos particulares.

Assim, na medida em que o discurso neoliberal se impõe, excluindo os sujeitos que caminham em tempos distintos, ele nos confisca qualquer possibilidade de individualidade e nos insere no engodo de sua dinâmica. Ser feliz entra como um imperativo - o imperativo do gozo, que pouco tem de felicidade, mas que "nos lembra que o verdadeiro imperativo do supereu na contemporaneidade é: ‘Goza!', ou seja, o gozo transformado em uma obrigação" (Lacan, 1975a, p.10 apud Safatle, 2008).

Calligaris contraria essa lógica, defendendo a importância da particularidade de cada sujeito, de cada vida. Quando qualquer lógica entra como imperativo, roubando a individualidade, vira boçalidade: "boçal é o cara que quer que o outro goze do jeito que ele acha que é certo" (p. 71). Esse parece ser um legado de extremo valor inscrito na família Calligaris, pois relembra também, com entusiasmo, da ética de seu pai, ex-prefeito de uma pequena cidade italiana e profundamente implicado e ocupado com a solução de dramas cotidianos da comunidade. Assim como ele, que, segundo os seus escritos e relatos, se ocupava seriamente com a escuta atenta dos detalhes daquilo que lhe era direcionado. 

Contardo Calligaris publicou diversas outras obras teóricas de aparente maior complexidade. Contudo, foi com este livro, de linguagem corrente, abordando e dando importância a questões cotidianas, que ele selou a sua carreira de escritor: de maneira simples e, por isso mesmo, complexa.

 



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ano - Nº 5 - 2023
publicação: 25-11-2023
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Autor(es)
• Dandara Ferreira
Universidade do Estado de São Paulo – Unesp

Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae (Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea). Pós-graduada em comportamento alimentar. E-mail: dandaraferreira@gmail.com

Notas

[1] Psicóloga clínica. Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae (Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea). Pós-graduada em comportamento alimentar. E-mail: dandaraferreira@gmail.com

[2] Lei que afirma a sujeição humana à causalidade moral, de tal forma que toda ação (boa ou má) gera uma reação, que retorna com a mesma qualidade e intensidade para quem a realizou.

Referências bibliográficas

FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, S. (1911-1913).  Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: ("O caso Schreber"), artigos sobre técnica e outros textos. Obras completas volume 10. Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: FREUD, S. (1917-1920). História de uma neurose infantil: ("O homem dos lobos"), além do princípio do prazer e outros textos. Obras completas volume 14. Tradução e notas Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LACAN, J. Le séminaire: Livre XX: encore 1972-1973. Paris: Seuil, 1975.

LISPECTOR, C. (1920). Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1977.

MACHADO, A. Proverbios y cantares. Madrid: El País, 2003. (Clássicos do Século XX).

SAFATLE, V. P. Por uma crítica da economia libidinal. Ide (São Paulo), São Paulo, v. 31, n. 46, p. 16-26, jun. 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062008000100004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 14 ago. 2023.

SALEME, M. H. A normopatia na formação do analista. São Paulo: Escuta, 2008.

 


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